O solo de baixo que mudou tudo, segundo Lemmy Kilmister

A história do baixo elétrico costuma ser contada pelos bastidores. Enquanto guitarras explodiam nos palcos com distorções estridentes e baterias comandavam o pulso das canções, o baixo seguia firme, com menos alarde, sustentando estruturas e definindo direções. Ainda assim, vez ou outra, algo quebra esse padrão. E um desses momentos parece ter acontecido em 1964, segundo Lemmy Kilmister, do Motörhead.

Lemmy não falava por falar. Ao longo de sua carreira, defendeu que o baixo podia ir além de sua função tradicional. Preferia o som sujo, carregado de distorção, mais próximo da guitarra. Isso moldou não apenas a identidade do Motörhead, mas também ajudou a expandir os limites do instrumento.

Ainda assim, para ele, a maior mudança de paradigma no baixo não nasceu nos anos 1970 nem no heavy metal. Veio quase dez anos antes do início de sua própria banda, com o solo de baixo gravado por John Entwistle em “My Generation”, do The Who. Para Lemmy, aquele momento não apenas quebrou regras: mostrou um novo caminho possível.

“Você ainda se enrola tentando tocar aquilo hoje”, disse Lemmy em uma conversa resgatada anos depois. “Você até consegue destrinchar as notas, mas imaginar aquilo naquela época… É outra história. E foi em 1964!”, afirmou, sem esconder o fascínio.

John Entwistle era o baixista do The Who desde sua fundação. Nascido em 1944, começou a tocar trompa antes de migrar para o baixo. Sua formação clássica lhe deu uma abordagem distinta. Não se contentava em apenas marcar o tempo. Criava frases, preenchia espaços e às vezes ofuscava a própria guitarra. Em “My Generation”, não só compôs o primeiro solo de baixo gravado em estúdio por uma banda de rock, como o executou com uma técnica que espantou colegas e críticos.

Na gravação, Entwistle utilizou um baixo Danelectro de escala longa, que mais tarde abandonaria por conta das cordas fracas — ele chegou a romper várias durante as tentativas de gravação. A versão final foi editada a partir de diversas tomadas, algo comum em gravações da época. Ainda assim, a velocidade e precisão de seus dedos foram suficientes para torná-lo referência entre baixistas.

Lemmy conheceu o The Who nos anos 1960, quando ainda trabalhava como roadie para o guitarrista Jimi Hendrix. Já havia tocado em bandas obscuras como The Rockin’ Vickers e Sam Gopal antes de ingressar no Hawkwind, onde seu baixo começou a chamar atenção. Mas foi com o Motörhead, fundado em 1975, que consolidou sua sonoridade agressiva.

“Meu som vinha da guitarra”, explicou Lemmy certa vez, ao descrever seu estilo. “Aprendi sobre as cordas que ficam soando — você deixa a corda Lá ou Ré tocar solta e faz a melodia na corda Sol. Ela entra por trás da guitarra de um jeito interessante. Usei muitos acordes também.”

A abordagem distorcida e quase anárquica do baixo por Lemmy não surgiu do nada. Era, em parte, uma resposta ao que ouvira de Entwistle. Mas também uma reação ao fato de não querer ser apenas uma sombra.

“Eu sempre quis ser o John Entwistle”, admitiu Lemmy. “Mas como esse posto já estava ocupado, acabei virando uma versão inferior. Pelo menos, acho que sou original.”

Ao longo das décadas, Lemmy jamais escondeu sua admiração pelo baixista do The Who. Em entrevistas, chamava-o de “o melhor”, destacando sua firmeza técnica, ausência de erros e domínio do instrumento. Não falava apenas como fã, mas como alguém que compreendia o desafio do que Entwistle havia feito.

Naquele solo de “My Generation”, Entwistle condensou uma ruptura. Até então, o baixo não costumava ganhar destaque em estúdio — muito menos com um solo próprio. A canção era também uma declaração da juventude britânica em meio à rigidez da sociedade pós-guerra. E Entwistle contribuiu com seu instrumento da maneira mais direta possível: ocupando um espaço que antes não era dado ao baixo.

A música chegou às rádios em um momento de intensa efervescência cultural no Reino Unido. Os Beatles haviam lançado “A Hard Day’s Night” em julho de 1964 e estavam prestes a expandir fronteiras com “Help!” em 1965. Os Rolling Stones exploravam o blues americano, enquanto o The Kinks trazia distorção e sarcasmo para o rádio. O The Who, mais jovem que os rivais, buscava uma identidade — e encontrou parte dela no baixo.

Nos Estados Unidos, o impacto inicial de “My Generation” foi menor. A música só viria a ganhar status cult mais adiante. Mas na Inglaterra, estabeleceu o The Who como uma banda ousada, disposta a desafiar padrões. E parte dessa ousadia veio de Entwistle, que não recuava mesmo diante das barreiras técnicas do estúdio da época.

Décadas depois, o solo continuava sendo motivo de fascínio. Geddy Lee, baixista do Rush, chegou a dizer que o que mantinha o Led Zeppelin em pé era o baixo de John Paul Jones. Mas quando o assunto era inovação, ele também mencionava Entwistle.

A comparação entre esses nomes não era gratuita. Cada um, a seu modo, mudou o modo como o baixo podia funcionar. Jones sustentava estruturas complexas. Geddy Lee fazia malabarismos entre técnica e musicalidade. Lemmy, por sua vez, levava o instrumento para o front, usando-o como uma arma sônica. Mas todos pareciam olhar para Entwistle como o ponto de partida moderno.

Nos anos seguintes àquele solo de 1964, o baixo ganhou espaço. Jack Bruce, no Cream, acrescentaria improviso e fúria. Larry Graham, no Sly and the Family Stone, traria o “slap”. Jaco Pastorius reinventaria a abordagem no jazz-fusion. Mas Entwistle permanecia como referência. Seu solo em “My Generation” era frequentemente citado como o momento em que o baixo se tornara algo mais do que coadjuvante.

Lemmy seguiu com o Motörhead até sua morte, em dezembro de 2015. Foram quatro décadas de barulho, velocidade e irreverência. Mas mesmo nos anos finais, quando perguntado sobre influências, voltava ao The Who. Em especial, ao Entwistle de 1964.

“Ele estava no comando. Nunca o vi hesitar. Nunca um erro que eu tenha ouvido”, disse Lemmy. “E rápido, com as duas mãos a mil por hora. Era outro planeta.”

O baixo, para muitos, continua sendo um instrumento invisível. Mas há momentos em que ele se coloca no centro da cena. E, para Lemmy, esse instante começou com o som grave e veloz de uma música gravada há mais de meio século. Uma música que, entre frases de rebeldia juvenil, encontrou tempo para um solo inesperado. Que virou tudo de cabeça para baixo.

Assista abaixo o vídeo de My Generation do The Who

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