Qualquer mero acontecimento na vida particular de um grande artista é o suficiente para gerar inspiração e transpiração para criar grandes canções ou álbuns. Ainda mais tratando-se de fins de longos relacionamentos amorosos, ah! isso gera, como sempre gerou, canções histórias na história de nossa música. O que podemos falar sobre Caetano Veloso neste contexto que menciono aqui? Vem comigo!
O cantor, no início dos anos 2000, fazia algum tempo que não lançava algum trabalho autoral, o seu período da década anterior foi marcado pela sua grande conexão musical os ritmos baianos, o seu último era até então o álbum de croosver brasileirado axé/olodum Livro, de 1997. Depois deste disco, lançou Noites Do Norte, de 2000 um elo à poesia de mesmo título de Joaquim Nabuco, um álbum fraco em parceria com o músico Jorge Mautner e uma coletânea horrorosa de canções americanas, Foreign Sound, de 2004 ( lembra daquela fracassada versão jazzística experimental de Smells Like Teen Spirit , do Nirvana ?).
O triste fim de relacionamento
Ele estava em produção constante, mas, de canções próprias, estava em grande hiato, foi uma época, de certa forma estava acomodado e confortável, fazendo experimentações e parcerias, sem contar a projeção internacional que o álbum ao vivo Prenda Minha proporcionou ( a canção melosa de Sozinho, composição de Peninha, foi um dos grandes hits da década). Porém, ele passou por um período muito complicado, triste e perturbado. O fim de seu relacionamento com a Paula Lavigne, marcaria a sua vida e carreira, proporcionaria uma grande mudança sonora em seus trabalhos, mantendo a sua poesia clássica, especialmente dos anos 70, com uma sonoridade mais suja, alternativa e vigorosa, entregando um dos melhores álbuns e mais aclamados de sua rica discografia.
Um mundo chamado “Cê”
Cê é o vigésimo sexto álbum do compositor baiano e, por vezes, é considerado como seu “disco de rock”, principalmente pela forma como o terno violão de outrora fora substituído por guitarras distorcidas e a percussão Axé anterior revisitada com uma bateria marcante e firme. Entretanto, simplificar este disco a esta máxima se revelou, com o tempo, uma tentativa falha de compreender o que de fato é a verdadeira natureza do LP.
O trio de produtores e músicos Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes foram os arquitetos sonoros responsáveis por transpor as idéias de Caetano para esta nova dinâmica de banda, idéias estas que, segundo os jovens músicos, já vinham prontas, demonstrando a constante e certeira direção sonora que o baiano sempre teve em seus discos. Este seria o primeiro de três discos (junto com Zii e Zie [2009] e Abraçaço [2012]) conhecidos como a trilogia Cê, e o ponto de partida de uma busca mais ávida e revigorada pela constante renovação da sonoridade de Caetano Veloso.
O Rock não é um som distante do universo musical do compositor. Na verdade sua relação com o gênero começa lá na década de 1970, quando seus discos incluíam covers de bandas americanas e inglesas como Beatles, revisitadas à sua forma quase como novas composições. O cover melancólico de “Help” em Jóia (1975) é um ótimo exemplo. Mais tarde, com Velô (1984) os arranjos mais agressivos começaram a ganhar forma dentro do imaginário de Caetano, apesar de tímidos. Mesmo assim, quando os jornais anunciavam que Cê era o seu disco Rock, houve certa surpresa, principalmente pela forma como problematizou a acessibilidade do gênero em seu livro de 1997, Verdade Tropical:
“Quanto a mim, não pode deixar de me soar gozado o uso da expressão ‘de garagem’ para definir um rock selagem […] pois cresci sem automóvel e entre pessoas que não tinham. […] A mera existência de uma garagem em casa teria sido para mim um sinal de vida luxuosa.”
De uma forma ou outra, Cê surgiu nesse inferno de dante emocional da separação de Caetano com Paula Lavigne e isso aparece de uma forma ou outra nas temáticas expressas dessas composições. Ao invés de traduzir seus sentimentos e impressões por meio de metáforas complexas e investigáveis, o compositor explicita a crueza do relacionamento, o frio calculismo das relações, a dinâmica das traições e o sexo real sem lhe disfarçar nenhuma particularidade.
Esta crueza dos fatos não rouba a poesia desses acontecimentos. Ao contrário. A realidade já é por si só poética e, o que fica evidente em Cê, é como Caetano é um exímio e atento observador, dotado de um olhar minucioso e cronista. Esse despir metafórico da realidade reflete na sonoridade do disco, ou na forma como o Rock de Caetano é construído: sem excessos, com sonoridade ásperas e estridentes e usando o silêncio entre os elementos das composições como um instrumento de igual importância para a formação do produto final.
A forma musical como o compositor procura aprofundar as relações se faz presente em letras instigantes. O árduo momento de encarar a pessoa depois do término é duramente narrado em Outro, como De cara alegre e cruel/Feliz e mau como um pau duro/Acendendo-se no escuro. A explosão Punk de Rock é terreno fértil para destilar o fel (“Você foi mó rata comigo”) a mesmo tempo que empregando a poesia sonora das rimas (“Animais/Metais/Totais/Letais/Eu não dei letra”). Se a célebre Deusa do Amor celebra o sentimento de forma grandiosa, a faixa Deusa Urbana desse disco é um retrato mais inseguro, cuidadoso com o amor e suas comparações menos óbvias, mas igualmente cruas (“Mucosa roxa, peito cor de rola”).
Uma batucada afro e suingada balada envolve a Musa Híbrida de Caetano, explicitando a multiplicidade da pessoa desejada (“A malha do teu pêlo/dongo, congo, gê, tupi, batavo, luso, hebreu e mouro”). Em Homem, aparece a postura macho inflexível e orgulhosa que, com boas doses de safada ironia, reconhece a impossibilidade e o desejo oculto pelo orgasmo múltiplo (outro exemplo maestria de Caetano em encaixar tantas palavras difíceis em um arranjo rígido). Também Não Me Arrependo carrega uma função poética importante no disco: é quando o eu-lírico de Caetano assume sua paixão e seu amor que, apesar do relacionamento em questão ter acabado, não se findaram imediatamente na sequência.
A canção ainda revela que “nada nesse mundo vai apagar o desenho que temos aqui”: ou seja, por mais que doa, a história e o passado mantém-se o mesmo, para sempre. Por fim, O Herói explora com imensidão poético, o olhar do casal para um olhar nacional, aplicando a mesma avidez e crítica ao âmbito nacional e construindo uma personagem repleta de sátira e paradoxo. Personagem esta que, mesmo após 18 anos do álbum rock, permanece atual, principalmente na atual conjuntura política (“A separação nítida entre as raças/Um olho na bíblia, outro na pistola”).
Cê não é um disco Rock de Caetano, é “um disco de Caetano” como qualquer outro e, por isso, conserva para si a imprevisibilidade de seu visão dos fatos particulares conectando elementos sociais do mundo atual como sempre fez muito bem durante toda sua carreira.
Caetano faz gigante um pequeno detalhe que não reparamos, e talvez o Rock (feito à sua forma) tenha sido a melhor forma de traduzir e cutucar a ferida aberta que o compositor vê e percebe. É talvez a parte mais significativa da trilogia que se iniciou aí, pois marca um início próspero de novos direcionamentos (não-rígidos, é claro, uma vez que também puderam ser desconstruídos nos próximos discos). Assim, Caetano nos entrega em Cê um ápice criativo que peitou qualquer dúvida na época de seu potencial artístico, colocando-se como um marco decisivo em sua discografia. Um disco sobre as incongruências de um amor não resolvido. Sobre o frescor do ódio pós-término e a indissociável dor que esse excesso causa.
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