O disco de estreia da banda Super Condutores, O Sertão Vai Virar Marte, gravado no estúdio Nas Nuvens com produção de Kassin, parte de uma premissa conceitual clara: estamos em um tempo em que a promessa de conexão se converte em solidão. A hiperconectividade — central na proposta do álbum — surge como sintoma de uma era em que o excesso de informação não implica entendimento, e o contato imediato não garante vínculo.
Essa leitura do presente aparece tanto na temática quanto na construção sonora. A base do projeto envolve músicos com passagens por nomes como Planet Hemp, Cidadão Instigado, Caetano Veloso e Seu Jorge. A presença de Pedro Garcia, Rodrigo Tavares e Regis Damasceno, além do próprio Kassin, soma densidade à proposta guiada por Vítor Patalano, que conduz o disco como quem organiza uma coleção de pensamentos urbanos e íntimos atravessados por ruídos vindos de todos os lados.
Texturas e sons da cidade
A sonoridade alterna entre guitarras saturadas e texturas eletrônicas que carregam um ar glacial. Há espaço para melodias mais diretas e construções experimentais, o que faz o álbum oscilar entre faixas que poderiam tocar no rádio e outras que parecem feitas para ser absorvidas em silêncio, com fones de ouvido. Essa variação ajuda a sustentar a ideia de que o disco não se organiza apenas como uma coleção de músicas, mas como uma espécie de libretto dividido em dez partes.
Fragmentos de um mundo em ruína
As letras apontam para inquietações diferentes, mas que orbitam a mesma constelação de temas. Em “Antares”, a sensação é de estar parado enquanto tudo passa. O corpo sente, mas a mente parece presa a um ciclo de repetições. Já em “Love Loop”, o ciclo vira tema: o amor se desloca, vai e volta, se repete até se esvaziar. A repetição da própria estrutura da faixa reforça a ideia de um circuito fechado, onde a emoção se transforma em hábito.
“Trágico” traz a perda da memória e da identidade como elementos centrais. Em um dos versos, o sujeito se apega àquilo que resta dele mesmo, numa tentativa de preservação do que não se pode mais nomear. Já “Hoje” aposta na urgência. O uso reiterado da palavra que dá título à faixa propõe um elogio ao instante, mesmo que esse instante seja construído sobre a dúvida. O questionamento religioso que aparece na canção não soa provocador, mas como parte de uma busca que não encontrou respostas no discurso institucional.
A paisagem que se desfaz
A faixa-título, “O Sertão Vai Virar Marte”, expande o campo simbólico. A transformação do sertão em um planeta árido e estranho cria uma metáfora que toca tanto o colapso ambiental quanto o sentimento de não pertencimento. A ideia de mundo conhecido que se desfaz, sem prometer nada em troca, se espalha pela música.
“Delírio” leva ao limite a confusão de quem já não sabe se está dentro ou fora da rotina. A figura do funcionário exemplar, diluída no absurdo cotidiano, espelha um estado emocional que transita entre o esgotamento e a apatia. A oposição entre ordem e caos retorna em “Guerra e Paz”, que ensaia um fim seguido por algo novo. A canção parece apontar para uma espécie de reinício, embora não deixe claro o que seria esse novo ponto de partida.
O herói sem poderes
A penúltima faixa, “Receita de Herói”, recusa os moldes tradicionais de força e bravura. Aqui, o heroísmo aparece ligado à presença, não à violência. A letra desmonta o mito de que é preciso se sacrificar para ter valor. Ser, no caso, já é suficiente. O encerramento vem com “Soneto do Sono”, que abandona a forma discursiva para apostar em vocalizações que flertam com o íntimo e o corporal, quase como se fossem respirações e sussurros recolhidos de um momento privado.
Entre a dúvida e o impulso
Ao longo de suas dez faixas, o álbum constrói um universo em que a cidade, a tecnologia, a memória e o afeto se misturam sem encontrar formas claras de separação. Em vez de respostas, o disco sugere perguntas que nascem do próprio ruído: o que resta quando tudo está visível, mas nada se toca? Como manter o sentido diante da aceleração e da dúvida constante?
O Sertão Vai Virar Marte se propõe a mais do que entreter ou contar histórias. Sua estrutura remete à ideia de um diário fragmentado, com entradas que refletem estados diferentes de um mesmo corpo social. A banda, ao se batizar Super Condutores, assume o papel de meio de passagem de uma energia emocional que ainda insiste em circular, mesmo quando o mundo parece ter entrado em curto.
Conclusão
As músicas do Super Condutores são uma surpresa boa para os ouvidos e para a música brasileira, que atravessa um dos períodos mais indigestos da sua história recente. O disco vale ser ouvido com atenção e mais de uma vez. A estreia da banda entrega um trabalho que merece ser apreciado com calma, não só pelo que diz, mas pelo modo como soa.
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