Um melancólico conto de fadas e os 30 anos de Bergtatt, do Ulver

A vasta natureza no continente escandinavo é lar do fruto de imaginação de diversas grandes lendas, especialmente, se tratando do ponto em que está localizado no mundo, onde a mesma zona da meia noite mencionada em meu texto anterior sobre o inigualável In The Nightside Eclipse, providencia os habitantes daquela região uma escuridão vasta e assustadora, que junto às belas paisagens, criam o ambiente propício para a tradição de um folclore diversificado. De lá, muitas bandas do gênero black e folk metal se inspiraram nessa grandeza cultural, e a norueguesa Ulver não seria exceção.

O Ulver foi fundado pela força motriz principal que perdura nos dias de hoje, Kristoffer Rygg, juntamente de Håvard Jørgensen e Carl-Michael Eide que haviam feito parte da primeira formação do Satyricon, desde a época em que a banda ainda se chamava Eczema. Vale lembrar que não apenas Håvard veio com o nome que fez essa famosa já antes de sair, como também é necessário aqui desmentir de que se originou do filme de 1969 de Federico Fellini, mas sim da simples tentativa de encontrar algum nome de aura mística no dicionário, onde apenas a palavra Satyr não era o suficiente para o músico, e o sufixo –icon foi a junção perfeita.

A banda havia lançado em 1993, ano de sua fundação, a demo Vargnatt, no mês de Novembro, na qual se realizou apenas um único show da era em que chamamos de Trolsk Sortmetall, que curiosamente, teve como um dos ex-membros Stian Tomt Thoresen, que seria mais conhecido pelo seu pseudônimo Shagrath com sua banda principal Dimmu Borgir e seu projeto musical Fimbulwinter, que também integrava o baixista Hugh Steven James Mingay, conhecido por Skol e que também integrava a formação do Ulver no ano de 1994.

Assim como visto com o Satyricon, o direcionamento musical fez Stian preferir seus horizontes criativos serem mais aproveitados para a banda na qual ficaria mais conhecido pelas habilidades vocais com o passar dos anos. Na época, os adolescentes, que ainda se encontravam na escola, já preparavam a sequência para a demo lançada no final do ano anterior, um planejado mini álbum, que conforme o processo criativo evoluiu, o tornou em uma obra prima que daria uma proposta diferente a visão criativa da cena do verdadeiro black metal norueguês para o público e a mídia, o álbum Bergtatt – Et eeventyr i 5 capitler, ou na tradução em português Encantamento – Um conto em 5 capítulos, lançado em Fevereiro de 1995.

À primeira vista, a recíproca é verdadeira – eis que há um álbum do gênero que tem um direcionamento musical um tanto oposto ao de seus colegas de cena, mas que ainda assim, possui elementos suficientes para serem parte desse. Quais seriam os elementos que mantêm esse trabalho como um álbum de black metal? Talvez a temática folclórica que já era explorada pelos seus colegas e também amigos, ou talvez o uso de tremolo picking, comum no gênero do metal extremo em algumas das composições? A resposta seria que todos esses elementos se encaixam num diferencial atmosférico que faz parte do romantismo que a segunda onda possui em suas composições. Logo, justificando e muito a natureza homogênea que esse meio passou a ter com o passar dos anos.

Foto: Ulver. Crédito: Divulgação.

O trabalho de natureza conceitual, de acordo com Rygg, se inspiraram tanto na linguagem e na literatura do período do Reinado da Dinamarca e Noruega, que ocorreu entre os séculos 16 e 19, combinados de superstições e folclore do período medieval. No conto que somos apresentados, como os antepassados que contavam aos mais jovens que muito impressionados ficavam perto de suas lareiras para ouvi-los, somos apresentados á uma lenda de criaturas que viviam nas montanhas, trolls, por assim dizer, que mesmo sendo facilmente derrotados por bravos guerreiros, ainda assim, se aproveitavam da fragilidade de jovens donzelas, principalmente princesas, que vagavam sozinhas nos bosques ao redor dessas, para as capturar e satisfazer todos os desejos e vontades dessas terríveis criaturas, ou quem sabe, talvez até mesmo virarem um banquete. Se olharmos de um escopo geral, eram cantos feitos para que amedrontar garotinhas para não ficarem perambulando por aí nos bosques a ponto de se perderem de seus vilarejos e famílias, da mesma forma que vemos em diversos folclores essa mesma estrutura narrativa ser usada.

Na primeira música I Troldskog Faren Vild, na qual podemos traduzir, Perdida em uma floresta de trolls, a nossa jovem heroína se perde na floresta após a neve que cai cobrir seu rastro que a ajudaria seguir de volta ao lar, seu porto seguro, onde a salvo estaria do rei da montanha que tem sede de sangue cristão, e essa roga em desespero e melancolia a sua volta em segurança, que não acontecerá. O ouvinte nota a primeira discrepância ao ouvir um álbum do gênero, como mencionado em parágrafos anteriores, que Garm não utiliza de vocais rasgados e bestiais, mas sim, de vocais limpos para cantar sobre a agonia dessa pobre garota rodeada por árvores que abraçam a nova convidada, sob uma névoa nefasta que sobre o seu caminho. É necessário entender que momentos em que as características extremas mais notórias do black metal são apenas usados para justificar momentos de intensidade nessa história, mesclando também de som ambiente junto dos instrumentos para ampliar a experiência atmosférica que nos é dada durante a audição desse trabalho fantástico. A agonia e eterna perdição o aguardam no próximo capítulo, onde a esperança começa a ser varrida do mapa.

Na segunda, Gaaer Bag Aase Need, O Sol de Põe Atrás da Colina, eis que o elemento mais insaciável por aquele que ouve desse conto se torna realidade, gritos ferozes sob uma crueza de imponência são utilizados para destacar o desespero da jovem, ao ver o pôr do Sol que a preparava para o pior que a aguardava, a calada da noite que trazia o despertar de vis criaturas, que logo, iriam lhe caçar e trazer para os confins das montanhas onde para sempre ficaria aprisionada. Como dito, as características principais do black metal aqui são notadas, porém, entrelaçando com os vocais limpos, e riffs intensos contrastando com mais cadenciados para lembrar melancolia e calmaria antes da tempestade, quando a protagonista já percebe que jamais veria seus entes queridos e tão pouco veria afago novamente em sua, agora, breve vida. A faixa já abre com uma passagem de violão, com estilo de acordes muito utilizado da característica músical regional clássica, antes do turbilhão que somos apresentados depois de poucos segundos de calmaria, o que já principalmente, se iguala com a forma também de compor na guitarra elétrica, muito comum em outros trabalhos lançados pelos seus colegas de cena.

As páginas viram, logo somos introduzidos ao terceiro capítulo de nossa história. A tempestade vocal e instrumental que veio para ficar é mais uma vez parte desse novo trecho, seguida de um canto limpo e triste que abre a música. No capítulo anterior, a pobre coitada adormece sob os musgos ao lado de uma árvore, já sentindo que nada mais tinha que se fazer para seu inferno astral que tomava conta de sua cabeça. Já acordada e perambulando aos arredores, sente ser observada, o escuro dá lugar a figuras sombrias, que com curiosidade, se deliciam do medo e desolação, apreciando a futura posse que será guiada ao seu lar em breve. Na execução, os instrumentos dão uma pausa profunda, nos leva ao silêncio atmosférico da vítima, que em seu desespero, corre, ao som de pisada de galhos e respiração abafada, que nos faz perguntar, quando essa tensão e fuga terá fim, será que ao Deus, cujas preces direcionou, a iria ajudar a fugir daquele local assustador, frio e escuro, ou apenas a ajudaria a aliviar a dor quando o pior batesse a porta? Novamente como um raio que tudo destroi, instrumentos elétricos de corda, bateria e vocais expressam o pior do receio, que logo se apaga em um fade out, prendendo esses momentos em nossa memória, e dúvidas, que nos assombram.

O quarto capítulo é o oposto, o trabalho acústico Håvard se permeiam nesse canto, essa acorda de um sonho de conto de fadas ao novamente adormecer na ponte anterior, onde elfos e o Sol lhes eram uma utopia, para se questionar se tudo vivido era apenas um mau sonho. Uma voz à chama, questiona o que ali ela faz e a guia para as montanhas, onde a paz ela encontrará, assim então, cessando as nossas esperanças de um final feliz, uma vez que a donzela se encontra, agora, atraída para uma armadilha. Seu destino final a aguarda, sob lindas passagens de violão e o estalar dos arredores da floresta. 

Seus temores anteriores se confirmaram, ela foi atraída para o lar das criaturas, que agora cantado em Bergtatt – Ind I Fjeldkamrene, Enfeitiçada – Entrando nas Câmaras da Montanha, a capturam após ser petrificada por encantamento, seus gritos desesperados de nada adiantam, seu Deus não está aqui e já não a ouve mais. No inferno das profundezas cavernosas, ela agora reside. As mesmas passagens que caracterizam as faixas anteriores, em riffs rápidos, misturados aos cadenciados em um ritmo constante, são a trilha sonora do clímax, que triste termina em acordes de tom maior e menor de um violão, que assim encerra nossa triste história.

Infelizmente, nenhum desses cantos foram contados á um público ao vivo, uma vez que os objetivos dos membros não estavam exatamente alinhados e os percalços da vida, davam um destino diferente profissionalmente a cada. Entretanto, no vídeo que pode ver abaixo, a primeira faixa é tocada pela primeira vez ao vivo durante a turnê da banda em 2009, com apenas Krystoffer como membro original no line-up. Mais conhecido pelos fãs, é esse de um show na Grécia, onde nessa época, a banda já não fazia black metal há um bom tempo, e diversas influências, desde o synthpop ao rock n’ roll, que se tornaram a normativa que viria por parte da mente criativa seu líder.

Nesses 30 anos que essa melancólica história é contada de grandes salões a cabanas ao lado de uma fogueira, ou do seu aparelho reprodutor de som, aqui fica a mensagem final, na qual esse que vos escreve, implora e em temerosa e leve voz alerta: não vague nas montanhas a noite, pois os estranhos o mal lhe irão fazer.

Autor

  • Maurício Silva

    Maurício é um rapaz que cresceu com pais músicos e sempre com um ouvido aberto e atento, desde o mais clássico até mesmo o mais extremo. Fã declarado e incondicional de Sepultura, Emperor, Alice In Chains e Dimmu Borgir.

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