É intrigante pensar que um dos gêneros musicais mais dançantes e vibrantes, o Funk, tenha suas raízes linguísticas em palavras que remetem a significados bastante distantes de sua essência contagiante.
O termo, que hoje lembra energia, groove e celebração, possui um histórico semântico que passa por significados como “medo” e até mesmo “odor desagradável”.
De onde veio o funk?
Originalmente, a palavra “funk” apareceu na língua inglesa para designar algo associado ao medo ou pavor. No entanto, seu uso também foi atrelado, a partir do século XVI, a uma conotação olfativa nada agradável, descrevendo odores nauseantes — frequentemente associados ao tabaco em ambientes fechados.
No início do século XX, o termo ganhou novos contornos ao se tornar parte do vocabulário da cena musical de Nova Orleans. Locais como o Funky Butt Hall, famoso por apresentações do pioneiro do jazz Buddy Bolden, incorporavam o termo “funky” como uma referência a lugares de atmosfera pesada e carregada, tanto literal quanto figurativamente.
A transformação semântica e sonora
Na década de 1950, “funky” começou a ser usado para caracterizar uma vertente específica do jazz, o funky jazz. Esse subgênero trouxe elementos mais viscerais e rítmicos, diferenciando-se pela improvisação ousada e pelo apelo direto à fisicalidade do ouvinte.
Foi a partir do final dos anos 1960 que o termo assumiu o significado que conhecemos hoje, consolidado por artistas como James Brown, que redefiniu o conceito de groove com linhas de baixo pulsantes, ritmos sincopados e fraseados precisos de instrumentos de sopro. O funk surgiu como um gênero completo, caracterizado por sua capacidade única de transformar a cadência musical em movimento corporal.
Elementos que definem o funk
O funk, em sua essência contemporânea, é um convite à dança. Entre seus principais traços, destacam-se:
- Linhas de baixo marcantes: Muitas vezes trazidas à frente da mixagem, são responsáveis por sustentar o groove e definir a pulsação rítmica.
- Técnicas de slapping e popping: Na execução do baixo, conferem dinâmica e textura ao som.
- Ritmos sincopados: Criam uma interação envolvente entre os instrumentos e o ritmo principal.
- Uso de instrumentos de sopro: Fraseados em uníssono adicionam potência e destaque em momentos chave das canções.
- Guitarras rítmicas: Geralmente tocadas em semicolcheias, reforçam o caráter percussivo do gênero.
Legado e influência
O Funk transcendeu seu contexto original, influenciando inúmeros outros gêneros, do hip hop à música eletrônica. Além disso, sua estética sonora e visual consolidou um legado que continua vivo tanto nas pistas de dança quanto nos palcos de grandes festivais.
Curiosamente, o que começou com uma palavra associada a odores e lugares “duvidosos” tornou-se sinônimo de celebração e liberdade criativa, mostrando que até as origens mais inusitadas podem dar vida a movimentos culturais transformadores.
10 discos essenciais para começar a entender o funk
Foi pensando nesse gênero tão especial que separei aqui 10 discos que considero essenciais para começar a curtir. Dentre eles, fujo um pouco do convencional, trazendo, dentro da discografia das bandas citadas, aqueles que considero o que tem aquele “tchan” a mais.
Sly & The Family Stone – Stand
Sly & The Family Stone foi uma das bandas mais originais da história além do funk . Sua formação clássica incluía igualmente membros brancos e negros, e mulheres em igual número que homens. Seu baixista, Larry Graham, dos maiores baixistas do gênero, foi o criador do “thumpin’ and pluckin’”, técnica mais conhecida como slapping. Stand!, seu terceiro álbum é o mais popular da discografia de Sly & Family Stone, com mais de 3 milhões de cópias vendidas. Embora isso não o torne essencial: sustenta-se na sua versatilidade, na sua psicodelia e nas suas melodias expressas em canções como “ Stand! “I Want to Take You Higher” e “Every People“.
Tower of Power – Tower of Power
Com um ritmo sincopado de seu baterista David Garibaldi e o personalíssimo sax barítono de Emilio Castillo, o disco de estreia deste grupo é perfeito pra quem está iniciando no gênero. Mas muito além do Funk, ainda há espaço para o soul, baladas e melodias atraentes. Os destaques ficam por conta de “What Is Hip?“, “Get Yo’ Feet Back on the Ground“, “Soul Vaccination” e a balada “Just Another Day“.
Earth, Wind & Fire – That’s the Way of the World
That’s the Way of the World, do Earth, Wind & Fire, é amplamente considerado um dos maiores marcos da música soul e funk. Originalmente concebido como trilha sonora para um filme homônimo, o disco superou o projeto cinematográfico, tornando-se um sucesso absoluto e alcançando o topo das paradas da Billboard. “Shining Star“, a faixa título e uma das mais famosas da banda, “Reasons“, estão neste disco.
James Brown – Get Up Offa That Thing
Mr. Dynamite era, como o próprio apelido diz, “dinamite pura”. Seus shows eram explosivos, cheio de energia, e com uma banda que era de tirar o chapéu. Com uma vasta discografia, que passa por muito soul, blues, gospel e até standards, Get Up Offa That Thing é um disco de transição que, além do funky tradicional, trazia já alguns elementos da disco, que começava a surgir. O Padrinho do Soul não estava para brincadeira. Ouça o disco todo!
The JB’s – Doing It To Death
Já que falamos de James Brown, vamos de JB’s. Os caras foram durante muito tempo a banda de apoio de James Brown. Um Dream Team de músicos de altíssimo nível. Sob a direção do lendário trombonista Fred Wesley, o álbum é uma celebração pura do funk, com grooves marcantes e instrumentais que definem o gênero. Repleto de improvisos brilhantes e linhas de baixo irresistíveis, o disco exemplifica a habilidade dos JB’s de transformar simplicidade rítmica em algo revolucionário, consolidando sua posição como um dos pilares do Funk nos anos 1970.
Betty Davis – Betty Davis
Lançado em 1973, o álbum Betty Davis, disco de estreia homônimo da artista, é um mais um marco do funk e soul, marcado por uma atitude desafiadora e uma estética sonora ousada. Com letras provocativas e uma performance vocal cheia de energia, Betty Davis rompeu barreiras ao abordar temas como sexualidade e empoderamento feminino com uma franqueza rara para a época. O disco conta com participações de peso, entre elas Neal Schon (Journey) que à época era guitarrista do Santana. “If I’m in Luck I Might Get Picked Up” e “Game Is My Middle Name” consolidaram Betty como uma figura singular, cuja influência ultrapassou décadas, inspirando gerações de artistas.
The Meters – The Meters
Lançado em 1969, o álbum de estreia homônimo do The Meters é um clássico essencial do funk instrumental, consolidando o grupo como pioneiro do gênero. Com grooves minimalistas e uma precisão rítmica impecável, o disco apresenta faixas que se tornaram ícones, como “Cissy Strut” e “Sophisticated Cissy”, demonstrando a maestria dos músicos em construir músicas com simplicidade e criatividade. A banda, formada por Art Neville, Leo Nocentelli, George Porter Jr. e Zigaboo Modeliste, trouxe a essência de Nova Orleans para o mundo, com um som que misturava influências do R&B, soul e jazz. Esse álbum estabeleceu as bases do funk moderno e sua influência se estende até hoje, sendo reverenciado por artistas e produtores de diferentes gerações, e foi um dos pilares para o surgimento do Hip Hop moderno.
Parliament – Chocolate City
Chocolate City é uma das obras mais politicamente carregadas do Parliament, combinando o funk irresistível do grupo com uma mensagem de orgulho e empoderamento afro-americano. Com a liderança visionária de George Clinton, o álbum celebra a diversidade cultural e imagina um futuro onde as grandes cidades dos Estados Unidos seriam comandadas por líderes negros, abraçando a ideia de uma “cidade do chocolate” como metáfora de resistência e identidade. Canções como a faixa-título destacam a habilidade única da banda de misturar grooves envolventes com comentários sociais, consolidando seu lugar como um dos pilares do funk dos anos 70.
Ohio Players – Ecstasy
“Ecstasy” marca um momento crucial na carreira do Ohio Players, consolidando seu estilo único que mistura soul, funk e R&B com um toque de sensualidade e energia. O álbum traz faixas marcantes como “Ecstasy” e “Sleep Talk“, que destacam os grooves hipnotizantes da banda, linhas de baixo pulsantes e os característicos arranjos de metais. A combinação de letras provocativas e performances instrumentais vibrantes transforma o disco em uma experiência sonora envolvente, reafirmando o Ohio Players como uma das bandas mais inovadoras da cena funk dos anos 70. E a capa era provocativa, a escolha de imagens provocantes era uma marca registrada do grupo, usada para refletir o tom carnal e intenso de sua música.
Average White Band – Average White Band
O álbum homônimo do Average White Band, lançado em 1974, é um marco do funk e soul que solidificou o grupo escocês como uma força global no gênero. Conhecido popularmente como o “White Album” por conta de sua capa minimalista, o disco trouxe grooves impecáveis e arranjos sofisticados que rivalizavam com as melhores bandas americanas da época. O grande destaque é “Pick Up the Pieces“, um clássico instrumental que dominou as paradas e mostrou o talento da banda em criar ritmos dançantes e melodias cativantes.
Listas são sempre difíceis, às vezes é um escolha muito pessoal, então é óbvio que muita coisa boa ficou de fora. Mas se você quer um começo para entender um pouco mais desse gênero tão cativante, mergulhe fundo nesses grooves!
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