O ano é 1955. O mundo ainda dançava o jazz, encantava-se com crooners como Frank Sinatra. Mas, no underground, uma bomba-relógio estava prestes a explodir. Um som novo, energético e, principalmente, temido pelos adultos.
A história lembra do Rei, Elvis Presley. Mas antes de Elvis, havia o precursor: Bill Haley.
Um homem improvável. Um cantor country de 30 anos, com um visual mais para vendedor de eletrodomésticos do que de rebelde.
Ele não possuía o sex appeal selvagem, mas tinha o som. E, antes de dominar o planeta com “Rock Around the Clock”, teve que superar uma infância marcada pela escuridão e uma revolução musical.
Além disso, contou com a ajuda do acaso, quando “Rock Around the Clock” entrou na trilha do filme “Blackboard Jungle” — no Brasil, “Sementes da Violência”. O que se viu dali para frente foi uma mudança na sociedade, nos costumes e no estilo de vida no mundo inteiro como nunca antes.
A história que você vê agora é a transformação de uma música do lado B de um compacto em um dos maiores e mais vendidos hits do estilo.
Quando a juventude ganhou nome, voz e espaço
Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, Bill Haley já era um adulto, mas as mudanças que ocorreram nesse momento colaboraram para o surgimento da juventude como categoria social distinta.
Aqui nascem a cultura própria, um mercado específico, símbolos e estilos, e uma “voz política reconhecível”.
Isso não quer dizer que jovens não existissem antes desse período, mas faltavam a escala, a autonomia simbólica e a centralidade que eles ganham a partir dos anos 1950 e 60.
Muitas mudanças sociais e econômicas deram o empurrão para essa “nova” massa crítica de jovens: os baby boomers, a prosperidade e o consumo que se seguiram a 1945. A mídia e a indústria cultural — puxadas pelo rádio, cinema e TV —, assim como ídolos, identificação por gírias e uma comunicação própria.
Apesar de ser um conjunto de fatores para a “invenção” da juventude, muita coisa mudou com o Estado de bem-estar social e o fordismo.
Nessa época, iniciou-se o movimento de retirar crianças e adolescentes da linha fabril e ampliar a escolarização. Leis trabalhistas e de escolarização infantojuvenil e o alongamento do tempo na escola criaram um ambiente propício para a vida em pares da mesma idade, com rotinas e costumes próprios.
A expansão do ensino secundário criou espaços como pátios escolares; agremiações sociais e atléticas foram fatores importantes para produzir a cultura juvenil.
Com mais tempo livre, formou-se um mercado juvenil de música, moda e lazer, o que reforçou identidades e estilos próprios.
Claro que as leis contra o trabalho infantojuvenil já vinham sendo discutidas entre o final do século XIX e o início do século XX em diversas partes do mundo, mas foi no pós-Segunda Guerra que ganharam tração, junto com a expansão do ensino médio (high school).
Bill Haley: um cowboy tímido às portas do rock
Foi nesse caldeirão sociocultural que Bill Haley começou seus primeiros anos como músico.
Nascido em 1925, cresceu em uma família com poucos recursos, porém musical. O pai era mecânico e tocava banjo; a mãe, professora de piano. Assim foi criado o pequeno Haley, mas logo na infância lhe aconteceu algo que afetaria sua autoconfiança: ele ficou cego do olho esquerdo devido a uma cirurgia malsucedida de mastoide para tratar uma infecção no ouvido, que acabou danificando o nervo óptico.
Essa deficiência resultou em terrível timidez durante a infância e a adolescência. Para desviar a atenção de seu olho esquerdo, Haley cultivou o que se tornaria sua marca registrada: o famoso cacho frontal, carinhosamente conhecido como “pega-rapaz”, sobre o olho direito. Na tentativa de camuflar, acabou criando um truque que aumentou sua popularidade.
Na época da Grande Depressão, em Detroit, sua família se mudou para Bethel Township, na Pensilvânia. Nessa época, Bill Haley tinha sete anos. Mesmo que sua mãe fosse uma exímia tecladista com formação clássica e seu pai, um excelente tocador de banjo e bandolim, Haley desenvolveu gosto pela música country.
Por volta dos 15 anos, ele deu seus primeiros passos em busca de uma carreira musical, abandonando a escola, apesar de já ter se apresentado em público aos 13 anos, em 1938, tocando violão e cantando em um evento de beisebol.
Sua ambição era clara: queria ser um cantor cowboy iodeleiro, um estilo de canto que alterna a voz de peito e a voz de cabeça.
Mas demorou mais quatro anos para que alcançasse seu primeiro grande momento profissional. Na ocasião, ele substituiu Kenny Roberts, cantor do grupo The Down Homers, que estava prestes a entrar para o exército americano.
E foi assim que o jovem tímido fez suas primeiras gravações profissionais.
Passados dois anos, Haley deixou o Down Homers e, nesse período, retornou à Pensilvânia devido às dificuldades financeiras, onde encontrou trabalho em uma rádio como DJ, sendo depois alçado a diretor de programação de uma estação por volta de 1949.
No entanto, o desejo de tocar persistia. Haley formou seu próprio grupo em 1947, o Four Aces of Western Swing, que mais tarde foi rebatizado como The Saddlemen, inicialmente um grupo de western swing.
A mudança no estilo da banda começou alguns anos depois, incorporando elementos de R&B à base country.
Vale lembrar que a sociedade — e a música como seu reflexo — estava segregada, ou seja, a música dos negros era o R&B, enquanto os brancos ouviam country, e esses dois universos não se misturavam.
Assim, Bill Haley e seu grupo The Saddlemen marcaram a primeira vez que um cantor country branco gravou abertamente uma canção tradicionalmente R&B e negra.
Quebrando a barreira da segregação racial, eles gravaram “Rocket 88”, um cover de Jackie Brenston and His Delta Cats.
No ano seguinte, gravaram “Rock the Joint” (1952) pelo selo Essex. O sucesso regional da música, especialmente em Cleveland, mais uma vez marcou a história da música para sempre. A canção acabou sendo a primeira referência ao termo rock and roll, cunhado pela primeira vez pelo DJ Alan Freed para descrever o som que Haley estava fazendo.
E assim estava criado o mito, o estilo que iria enlouquecer milhões de jovens — apaixonados por um gênero que existe até hoje.
“Rock Around the Clock”: um lado B à espera do seu momento
A música estava criada, mas a identidade visual também precisava estar. Em 1952, para isso, a banda abandonou os chapéus e adereços country. E, para dar fim ao passado, The Saddlemen foram oficialmente renomeados para Bill Haley with Haley’s Comets, um nome inspirado na pronúncia do Cometa Halley.
E assim, avançaram rumo ao mainstream com o sucesso “Crazy Man, Crazy” (1953).
A canção foi escrita por Haley e seu baixista Marshall Lytle. Com o advento da juventude, a música já usava gírias adolescentes e, de modo geral, a banda já havia deixado sua estética visual western, mesmo que ainda houvesse resquícios em algumas fotos de época.
A música atingiu o Top 20 nas paradas pop americanas, chegando ao número 12 na Billboard.
Muitas fontes consideram este o primeiro disco de rock and roll (ou rockabilly) de um artista branco a alcançar sucesso significativo nas paradas dos EUA.
Após o sucesso de “Crazy Man, Crazy”, o nome do grupo foi simplificado para Bill Haley and His Comets. O mundo da música pop, dominado por standards e jazz, estava prestes a ser varrido por um som mais rápido, mais sujo, impulsionado por um “cowboy” que aprendeu a balançar.
O palco estava montado para que, um ano depois, eles gravassem um lado B despretensioso que mudaria a história para sempre: “Rock Around the Clock”. Haley havia chegado.
Gravações de Rock Around The Clock
Em 1953, Bill Haley and His Comets estavam gravando para a Essex Records, um selo pequeno de propriedade de Dave Miller.
Haley já havia feito história, recentemente alcançando o Top 20 dos EUA com “Crazy Man, Crazy”. O sucesso incentivou o editor e compositor James Myers (que usava o pseudônimo “Jimmy DeKnight”) a oferecer a Haley uma nova música que ele havia ajudado a escrever: “Rock Around the Clock”.
Haley, que já vinha tocando a música ao vivo em seus shows em Nova Jersey, estava obcecado por ela, justamente porque entendia que a melodia era “natural para seu estilo” e sabia que tinha em mãos algo grandioso.
Mas, como toda boa história, sempre há obstáculos — e, nessa, não foi diferente.
James Myers, compositor de “Rock Around the Clock”, e Dave Miller, proprietário da Essex Records, tinham uma rusga e, devido a esse conflito, Miller estava determinado a impedir que a música fosse gravada pela Essex.
Haley relatou que tentou levar a música para o estúdio três vezes, mas, em todas, Miller interferiu. O próprio Haley alegou que Miller rasgava a partitura e a jogava fora, garantindo que “Rock Around the Clock” nunca seria gravada pela Essex Records.
O relógio estava correndo. Embora “Crazy Man, Crazy” tivesse sido um sucesso, as tentativas subsequentes de Haley de gravar músicas no estilo adolescente para a Essex Records simplesmente não estavam funcionando. Haley, a banda e o empresário Jim Ferguson perceberam que precisavam se libertar de Miller e do selo.
E assim, Haley e sua equipe procuraram um novo lar. O destino veio na forma de Milt Gabler, um produtor da influente Decca Records. Gabler, que tinha um histórico de sucesso com artistas como Louis Jordan, não apenas gostou da música de Haley, como também viu “um potencial sério” na banda, especialmente com base no trabalho que haviam feito com “Rock the Joint” e “Crazy Man, Crazy”.
Gabler não teve problemas em aceitar “Rock Around the Clock”.
Após deixarem a Essex Records na primavera de 1954, Bill Haley and His Comets assinaram com a Decca Records. A primeira sessão crucial foi marcada para 12 de abril de 1954, nos estúdios do Pythian Temple, em Nova York.
Mas nem tudo são flores, e a sessão inaugural na Decca não começou bem. O baixista Marshall Lytle relembrou que a banda viajava de ferry de Chester, Pensilvânia, para Nova York, e o barco encalhou em um banco de areia, fazendo com que chegassem atrasados ao estúdio, segundo relato de Lytle.
Com pouco tempo, Gabler — que já havia decidido que “Thirteen Women (And Only One Man in Town)” seria o lado A do single de estreia na Decca — direcionou os esforços para essa faixa.
Assim, a banda dedicou aproximadamente três horas e meia a “Thirteen Women”, sobrando apenas 40 minutos para o lado B, “Rock Around the Clock”.
Por sorte, a banda já havia feito sua pré-produção, pois a música fazia parte do repertório ao vivo. Devido ao tempo apertado, a gravação foi feita em duas tomadas.
Apesar da pressa e da aparente falta de importância dada à canção, a gravação daquela tarde se tornaria um marco.
A Decca lançou o disco em 20 de maio de 1954, com “Thirteen Women” como o lado A e “(We’re Gonna) Rock Around the Clock” como o lado B.
O single teve um sucesso inicial modesto, alcançando o número 23 nas paradas, mas logo as vendas estagnaram. Por um ano, o hino que definiria o rock and roll jazia “esquecido” como B-side.
Blackboard Jungle: o dia em que o cinema abriu a porta do rock
Uma das pessoas que compraram o disco com “Rock Around the Clock” foi o jovem Peter Ford, residente de Beverly Hills. De família abastada, sua mãe, a atriz e dançarina Eleanor Powell, adorava o rei do swing, Benny Goodman, e jazz; seu pai, o astro do cinema Glenn Ford, gostava de melodias havaianas.
Mas, como todo jovem de sua época, Peter estava em busca de seu próprio nicho e adorava música negra. Sem muitos amigos, a música era seu refúgio. À noite, ele ouvia o DJ Hunter Hancock, primeiro a tocar R&B nas estações de rádio de Los Angeles.
A família o incentivava e o levava recorrentemente às lojas de música de Beverly Hills e, através dos discos, ele conheceu The Kings of Rhythm, Johnny Ace, The Orioles, The Crows, The Flamingos, The Larks e muitos outros.
Foi em uma dessas visitas a lojas de discos, em 1954, que Peter Ford, então com 9 anos de idade, adquiriu o disco de 78 rotações lançado pela Decca que continha “Thirteen Women (And Only One Man in Town)” e “Rock Around the Clock”. A primeira foi desprezada pelo garoto; a segunda o agradou na hora, mas, mesmo assim, ainda não estava entre as favoritas dele.
Mas quis o destino que “Rock Around the Clock” tivesse outro fim.
Seu pai estava gravando um filme sobre estudantes, chamado Blackboard Jungle (Sementes da Violência). E, como era de costume, ele recebia seu amigo e diretor do filme, Richard Brooks, já perto do encerramento das gravações.
Em um papo sobre a trilha sonora para Sementes da Violência, Brooks disse a Glenn que estava atrás de uma música para a abertura do filme — uma canção enérgica, com melodia para dançar e pular, que instintivamente evocasse uma geração tensa.
Foi aí que Glenn Ford falou a Brooks sobre seu filho e mencionou que ele estava começando a gostar de músicas desse estilo e poderia ter alguns discos para mostrar.
O jovem atendeu ao pedido do pai e emprestou alguns discos ao diretor, entre eles: alguns de Joe Houston, “Shake, Rattle and Roll” de Joe Turner e “Rock Around the Clock”, de Bill Haley and His Comets.
O que se viu com o lançamento do filme foi algo que ficou gravado não só na cabeça do jovem Ford como também na consciência coletiva norte-americana.
“Rock Around the Clock” foi escolhida para abrir o filme e se tornou o nascimento do rock and roll como movimento mainstream — não mais segmentado a um nicho.
E assim, após o prefácio escrito no filme, sob o som de um tambor:
Nós, nos Estados Unidos, somos afortunados por
termos um sistema escolar que é um tributo às nossas comunidades e à nossa fé na juventude americana.
Hoje, estamos preocupados com a delinquência juvenil,
com suas causas e seus efeitos. Ficamos especialmente preocupados quando essa delinquência ferve em nossas escolas.
As cenas e os incidentes aqui presentes são fictícios.
Contudo, acreditamos que a consciência do público seja um primeiro passo na direção de um remédio para qualquer problema.
É nesse espírito, e com essa fé, que Sementes da Violência foi produzido.
A reação do público, com a sequência da música “One, Two, Three O’Clock”, foi muito próxima da histeria — não apenas entre adolescentes, mas também entre pais e políticos.
Há relatos de adolescentes dançando nos corredores do cinema, adotando seu hino, algo que os representava em seus carros. A comoção logo se espalhou pelos Estados Unidos. O jornal The Philadelphia Inquirer relatou que alunos da Universidade de Princeton faziam competições nos quartos das repúblicas para ver quem tocava mais alto; à meia-noite, os estudantes esvaziaram os dormitórios e foram para as quadras, atearam fogo a latas de lixo e saíram cantando pelas ruas de cima a baixo.
Muitos estados acabaram proibindo a exibição do filme, mas, mesmo assim, três meses após sua estreia, Sementes da Violência fez “Rock Around the Clock” tornar-se o single mais vendido do país. Foi, portanto, a primeira música chamada de “rock and roll” a chegar ao número 1 das paradas da Billboard — vendendo mais cópias físicas do que qualquer canção de Elvis Presley, Beatles, Madonna ou Michael Jackson.
E assim, o rock and roll não só mudou a música, como também influenciou todo o sistema cultural, trazendo consigo várias mudanças sociais, culturais e políticas que vemos até hoje.
 
 
 
 
 
 



 
 
 
 
 
 
 
 