Entre Poesia e Rock: A História do Biglietto Per L’Inferno

Formada em 1972 em Lecco, na Itália, Biglietto Per L’Inferno participou do cenário do rock progressivo italiano, trazendo uma combinação de elementos sinfônicos e hard rock. No Festival Be-In de Nápoles, em junho de 1973, a banda ganhou notoriedade, o que levou ao lançamento do álbum homônimo pela Trident no mesmo ano. Este disco é lembrado por suas passagens instrumentais complexas e o uso criativo de sintetizadores.

A identidade do grupo

O vocalista Claudio Canali contribuía significativamente para a identidade do grupo, não apenas pela potência vocal, mas também pela presença de palco. Apesar de sua curta trajetória, encerrada em 1975, a banda deixou material que continuou sendo explorado. Em 1992, o álbum “Il Tempo Della Semina” foi lançado com gravações feitas em 1974. Este trabalho reflete influências de grupos como Gentle Giant, Jethro Tull e Banco del Mutuo Soccorso, ao mesmo tempo que se aproxima de uma abordagem mais acessível.

Em 2015, a banda revisitou seu repertório, incorporando elementos folk e instrumentos tradicionais. Esta nova formação incluiu músicos como Enrico Fagnoni, Renata Tomasella, Ranieri Fumagalli, Mariolina Sala, Carlo Redi e Franco Giaffreda, ao lado dos membros originais, ampliando ainda mais o repertório do grupo.

Discografia

A discografia da banda inclui álbuns que exploram diferentes facetas do rock progressivo italiano. Apesar de compacta, esta coleção se destaca pela qualidade e criatividade presentes em cada lançamento.

  • Biglietto per l’Inferno” (1974): O álbum de estreia da banda, lançado pela Trident Records, é uma obra crucial que captura a essência do rock progressivo italiano dos anos 70. É altamente apreciado por sua composição inovadora e a habilidade técnica dos músicos.
  • Il Tempo Della Semina” (1992): Este álbum foi lançado postumamente, contendo gravações de 1974. Apesar de ser o segundo álbum da banda, ele mantém a energia e a criatividade do primeiro, oferecendo aos ouvintes uma viagem mais profunda ao estilo único da banda
  • Tra l’Assurdo e la Ragione” (2009): Lançado muitos anos após os dois primeiros, este álbum mostra uma maturidade na sonoridade da banda, mantendo ainda o espírito original que cativou os fãs inicialmente.
  • Vivi, Lotta, Pensa” (2015): O mais recente álbum da banda continua a explorar o rock progressivo com uma abordagem mais moderna, integrando influências contemporâneas enquanto permanece fiel às raízes progressivas da banda.

A banda também conta com um álbum ao vivo e uma coletânea, proporcionando uma experiência abrangente de sua evolução musical.

O álbum Biglietto per l’inferno

O primeiro álbum de Un Biglietto Per L’Inferno emerge como uma vibrante fusão de poesia e dinamismos sonoros autênticos. Nele, é possível identificar influências de Deep Purple, Jethro Tull e PFM, mas sem soar como uma cópia, já que os artistas conseguiram criar uma identidade própria ao capturar a intensidade de suas performances ao vivo.

Destaques

O talento de Claudio Canali, atuando como vocalista e flautista, é marcante, com as faixas trazendo severas críticas à duplicidade da sociedade. Uma variedade de ritmos e atmosferas permeia o disco, entrelaçando todas as faixas numa espécie de narrativa extensa que nos conduz por uma viagem metafórica rumo a uma “escadaria para o inferno”.

Ansia

A música que abre o álbum, “Ansia“, inicia-se com suaves melodias de órgão e guitarra, evoluindo para um ritmo mais complexo e carregado de tensão; a voz de Claudio Canali se faz presente ao final da canção, estabelecendo o “motivo” do álbum. 

As letras pintam um quadro de desconforto e temor, nascidos de uma “existência sombria e vergonhosa, consumida em atos de assassinato e roubo”, e a procura frenética por um libertador, alguém capaz de mitigar o sofrimento e acender uma luz de esperança. Não importa se são charlatões, comerciantes, profetas ou sacerdotes. Serve como uma introdução envolvente para o que está por vir.

Confessione

Confessione” apresenta um diálogo intenso entre um assassino e um frade, embalado por uma música vibrante e furiosa, salpicada com elementos reminiscentes de Deep Purple, entrelaçados com a agilidade da tarantela e interlúdios de flauta que lembram muito Jethro Tull.

A interpretação de Claudio Canali é absolutamente incrível, sua voz carrega a busca por compreensão frente à onda de violência que marcava a Itália no começo dos anos setenta.

Ouça-me, frade, Não sei se pequei, Assassinei um canalha que tentava lavar seu passado sórdido com dinheiro, Assim, procurando burlar seu destino. Ouça-me, frade, E me diga se é pecado ou uma ação honrosa, Subtrai dinheiro de um homem abastado, Só para alimentar um moribundo“.

Entretanto, o disco pouco espaço oferece à esperança, e a resposta do frade serve de sombria introdução ao trágico desenlace de outra faixa: “Não consigo te livrar do fogo eterno, Seu destino é apenas um bilhete para o Inferno!“. Simplesmente arrebatadora a história até aqui.

Una strana regina

Uma introdução magistral de órgão dá o tom para “Una strana regina“, uma composição que tece elementos de música sacra, toques à la Jethro Tull, hard rock e tradições musicais italianas. A voz de Claudio Canali, carregada de pessimismo, narra a continuação do diálogo entre o assassino e o frade.

Reina sobre a Terra uma rainha bizarra, Seus castelos são as ruas por onde passeia, Trocando de vestes ao cair da noite, Seu reinado é o da hipocrisia. Aguardemos que o olhar de nosso Deus, do alto, possa alcançar-nos e perdoar nossa falta de fé“.

Il nevare

Segue-se “Il nevare“, destacando-se por sua qualidade excepcional, com momentos que remetem ao blues e uma guitarra elétrica que se destaca. Claudio Canali descreve esta canção como uma “prece secular”, cujas letras convidam à reflexão e introspecção, sugerindo que, apesar da prevalência da hipocrisia e maldade, é possível extrair felicidade da mera observação da natureza e da queda de neve. Este momento é um dos mais sublimes do álbum.

Naquele dia, pesados flocos de neve caíram, umedecendo meus olhos, Perdidos na claridade, Perdidos na tentativa de conhecer, de perceber, Quanto prazer simples pode vir de uma nevada. De longe, o som de um campanário evocava uma prece, Enquanto, sobre os telhados, sombras antigas festejavam a noite“.

L’amico suicida

L’amico suicida” se destaca por sua duração e complexidade, carregando um peso dramático profundo. A composição reflete experiências pessoais, sendo influenciada pelo suicídio de um amigo próximo de Canali durante o tempo em que serviam juntos nas forças armadas. “Uma aura de morte circunda seu corpo”: assim, a voz de Canali, carregada de tristeza e emoção, acompanha a música que se desdobra, forte e melancólica, ao longo de quatorze minutos repletos de intensidade.

Reflexões finais

Um som estrondoso ecoou, como se estivesse despencando por uma escadaria vasta e sem fim. E, no abismo, encontrou a escuridão. Ele sabia disso. Tinha mergulhado na escuridão. E, no momento da realização, perdeu todo o conhecimento.”

A passagem do romance Martin Eden, de Jack London, aparece aqui por traduzir de forma poética o clímax da história, conectando-se de maneira intensa com o desfecho do álbum. Antes de tudo se encerrar, somos presenteados com uma reprise instrumental de ‘Confessione’, que, mesmo sendo breve, adiciona um toque especial ao conjunto. Pode até ser que essa banda ou o álbum não estejam entre os mais famosos do RPI, mas essa obra é daquelas que todo fã de prog italiano deveria ter na coleção. É um disco que não só merece ser descoberto, mas que também revela sua importância a cada nova audição

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Ouça o álbum

Autor

  • Julio Mauro

    Júlio César Mauro é um nerd de carteirinha e pai de duas meninas, com um jeito peculiar, às vezes um pouco ranzinza, e sempre lidando com o desafio de viver com TDAH.

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