Jimi Hendrix é quase sempre lembrado como um gênio absoluto da guitarra elétrica — um músico que reinventou o instrumento e expandiu os limites do rock. Mas, em meio a solos incendiários e efeitos revolucionários, um traço essencial de sua arte costuma passar mais discretamente: sua sensibilidade como letrista. Em uma discografia curta, porém decisiva, Hendrix construiu um vocabulário poético próprio, no qual imagens, símbolos e emoções caminhavam lado a lado com a sonoridade psicodélica do The Jimi Hendrix Experience.
Curiosamente, muitas de suas ideias mais delicadas apareciam logo nos títulos das músicas. “The Wind Cries Mary” e “Little Wing” são exemplos claros de como ele condensava sentimentos complexos em poucas palavras. Entre todos, porém, há um título que parece concentrar como nenhum outro o universo simbólico de Hendrix e o alcance de suas letras: “Voodoo Child (Slight Return)”.
A música se tornou um marco do rock, redefinindo o que o blues elétrico poderia ser. A guitarra soa como uma força indomável, impulsionada por riffs cortantes e cheios de tensão. Hendrix extraía do instrumento uma variedade de timbres que fazia a banda soar muito maior do que realmente era. Ainda assim, por trás desse impacto imediato, o título da canção guarda um significado que vai muito além da energia sonora.
Em Electric Ladyland, último álbum de estúdio do Experience, Hendrix explorou o conceito de “Voodoo Child” em duas faixas distintas. Além da versão explosiva “(Slight Return)”, há também “Voodoo Chile”, uma jam de cerca de quinze minutos gravada um dia antes. Essa foi a primeira vez que Hendrix fez uma referência tão direta à sua herança africana no título de uma música, abrindo uma nova camada de leitura para sua obra.
“Voodoo Chile” nasceu de uma sessão improvisada com Mitch Mitchell e convidados como Steve Winwood e Jack Casady. A atmosfera é mais solta e introspectiva, quase ritualística, contrastando com a abordagem mais direta e afiada da versão definitiva. O detalhe curioso está na grafia: “Chile” é apenas uma variação fonética de child (“criança”), e não tem relação alguma com a pimenta — um equívoco comum entre ouvintes desavisados.
Já “Voodoo Child (Slight Return)” marcou a última gravação de estúdio de Hendrix com o Experience e se tornou uma de suas músicas mais emblemáticas. A ideia central já existia, mas ganhou forma definitiva com a entrada entusiasmada de Noel Redding e Mitch Mitchell. O próprio Redding contou depois que a banda aprendeu a música ali mesmo, no estúdio, praticamente em tempo real.

Parte dessa gravação foi registrada por câmeras da ABC, que queriam captar o grupo “em ação”. Hendrix relembrou a situação com bom humor: eles repetiram a música algumas vezes apenas para parecer que estavam realmente gravando. Mesmo encenada, a cena acabou registrando algo genuíno: a química espontânea e a força criativa da banda naquele momento.
Para entender o peso simbólico de “Voodoo Child”, é importante olhar para o significado do vodu. Mais do que um estereótipo popular, trata-se de um conjunto complexo de práticas religiosas que surgiu entre povos da África Ocidental e Central, levados à força para as Américas. No Haiti, essas tradições se misturaram a elementos do catolicismo, dando origem a um sistema espiritual rico e profundamente ligado à identidade cultural negra.
A partir da Louisiana, o vodu — em suas diferentes formas — influenciou diretamente o blues, especialmente no sul dos Estados Unidos. Elementos simbólicos dessa tradição aparecem em inúmeras canções do gênero. Um exemplo clássico é o “mojo”, citado em “I Got My Mojo Working”, de Muddy Waters. No contexto religioso, o mojo é uma pequena bolsa com objetos simbólicos, usada como amuleto de proteção, cura ou sorte.
Ao se declarar um “Voodoo Child”, Hendrix se colocava como herdeiro direto dessa tradição — tanto do blues quanto de algo ainda mais profundo, ligado à diáspora africana. Esse gesto simbólico, aliado à força da música, fez com que a canção fosse associada ao espírito do Black Power, como uma afirmação de identidade e autonomia.
Essa leitura ficou explícita quando Hendrix apresentou “Voodoo Child (Slight Return)” como “o hino nacional dos Panteras Negras” durante um show no Fillmore East, em 1970. A declaração indicava uma mudança clara em sua postura política e cultural, especialmente se comparada a entrevistas do início de sua carreira. A música, com seus ritmos carregados de referências africanas e sua postura desafiadora, parecia refletir uma confiança renovada em assumir esse lugar simbólico.
Infelizmente, essa fase apontava para caminhos que nunca chegaram a ser plenamente explorados. Hendrix morreria apenas nove meses depois daquela apresentação, deixando para trás não apenas músicas inesquecíveis, mas também a sensação de que sua arte ainda tinha muito a revelar.



