Devo confessar que já havia perdido minhas esperanças no dia em que viria a me deparar com uma banda (auto-identificada como sendo “de rock”) cujas letras de suas canções exploraria conceitualmente num álbum o tão absurdamente rico quanto tragicômico temário de mão beijada oferecido pela política brasileira. Especialmente, é claro, em relação aos anos padecidos pela nação sob jugo da extrema direita bolsonarista e sua bisonha caterva de seguidores.
Os acontecimentos nos últimos tempos sucedidos na inigualavelmente louca história deste nosso país pareciam-me (e até hoje continua me parecendo) definitivamente um prato cheio levando-se em conta seu psicodélico cenário de absurdos e tragédias. Mas quando menos eu esperava — dando por certo de que desse mato não sairia “cachorro” algum — eis que do nada gratamente fui surpreendido pela luz trazida por um grupo de nome um tanto sui generis: o Sentimento Carpete. Esses, sim, entenderam o “recado”.
Antes de falar especificamente sobre a banda surgida no underground da cidade de Santo André, situada no ABC paulista (e também a respeito do novo e bombástico disco), porém, peço licença para seguir além para fechar a iniciada digressão acima sobre “rock e política”. E só pensar que o rock-and-roll quando surgiu, nos anos 1950, era uma poderosa força antisegregacionista a qual conseguia com a força de sua música, nos Estados Unidos (seu local de nascença), colocar-se acima dos políticos, da política, CIA, da KKK e do próprio establishment. Ou seja, uma arma perigosíssima para os órgãos de controle. Uma mortífera arma capaz de pôr jovens para dançarem juntos, sem barreiras ou preconceitos, ao som tanto de brancos quanto de negros: Chuck Berry, Buddy Holy, Roy Orbison, Fats Domino, Ray Charles, Elvis Presley, Jerry Lee Lewis. Carl Perkins, um dos pioneiros, contou que certa vez Chuck Berry teria chegado nele e dito: “Você por acaso sacou que o que estamos fazendo aqui é algo muito mais importante do que aquilo que os nossos políticos estão fazendo por nós lá em Washington?”.
Ópera Rock — Para dizer então lhes dizer, a despeito disso tudo, que a Sentimento Carpete está fazendo sua parte nesse “negócio” chamado rock’n’roll. E para tanto aposta dessa vez suas fichas, ora vejam só, no audacioso formato de uma ópera rock. E não é a primeira vez que eles fazem algo do tipo. Eis que neste abril de 2025 finalmente vem ao mundo o segundo título que a banda com 20 anos de existência vai lançar neste formato: “Sentimento Carpete na Era dos Cu D’águas” (A Síndrome de Tiger Woods de 2016 foi a primeira ópera roqueira deles). O letrista e também vocalista Felipe Bigliazzi traz uma definição sobre o novo rebento: “Trata-se de uma ode a Tommy e Magical Mystery Tour, em tempos de ascensão e queda da extrema direita tupiniquim”. O sugestivo título, por sua vez, alude a uma expressão pescada em um episódio do humorístico televisivo Hermes & Renato.
O Sentimento Carpete é um dos grupos mais singulares — estética, política, sonora e roqueirísticamente falando — surgidas nos últimos tempos no Brasil (como escreveu o poeta Matheus Novaes sobre a eles, “o conjunto que desafia o improvável insistindo em permanecer”). O quarteto alista em sua formação Rafael Fortunato na bateria, Fabio Muller nas guitarras, Ricardo Arashiro no contrabaixo e Felipe Bigliazzi nos vocais. Em sua discografia contabilizam outros quatro discos: Sentimento carpete (2012), A Síndrome de Tiger Woods (2016), Canta a Los Ancianos(2018) e Invisível (2020).
Lírica Rocker — As sessões de gravação de Sentimento Carpete na Era dos Cu D’águas realizaram-se no inverno de 2023 no estúdio 74Club. Na produção, o álbum leva a chancela da dupla de produtores Carlos Motta e Deni Takeda. Em seu repertório de dez faixas, o quarteto traz a tona sua infusão sonora garage punk 60 (de vultos como The Seeds 13Th Floor Elevators e The Music Machine), punk 77 (Buzzcocks, Undertones, Vibrators, The Clash Sex Pistols e Ramones) e o proto-punk de MC5 e The Stooges. Na lírica poética assumem influências de laureados nomes do brega, dentre os quais, Odair José, Paulo Sérgio e Reginaldo Rossi. Juntando a isso manguebeat, punk brasileiro, jovem guarda. Como resultado, pura nitroglicerina.
Legítimas e bem-humoradas crônicas, os títulos das músicas do disco falam por si próprias. A faixa de abertura “A Era dos D’água”, por exemplo, sumariza em sua letra o trânsito de bizarros tipos como cavaleiros templários, policiais reformados, jovens empreendedores, agro boys e pastores neopentecostais (o pano de fundo os cartões postais de Santo André). Em seguida, a hilária “O MBL Roubou o Meu Bem” faz uma galhofa ao estilo Renato e seus Blue Caps roubando descaradamente dos Ramones os irresistíveis riffs e a também a base de “The KKK Took My Baby Away”. Já “Adelio, O Quase Heroi Brasileiro” com sua pegada Fuzztones presta homenagem a um dos mais obscuros personagens da Era Bolsonaro.
Fora também canções como Aztec (essa uma versão para “You Gonna Miss Me” dos The 13Th Floor Elevators) e Morcegos de Wuhan cujo instrumental emula ambiência de ficção científica em um distópico futuro (abordando com sua sonoridade a sinistra e misteriosa trama que culminou no coronavírus). E, ainda, para fechar a saga operística de Sentimento Carpete na Era dos Cu D’águas, “Me Abraça, Reaça” na qual a banda narra à sua maneira narra os acontecimentos que ocorreram no fatídico dia “8 de Janeiro”. Na derradeira canção do álbum, os destemidos guris da Sentimento Carpete arriscam-se pela primeira vez num brasileiríssimo samba rock. Um grand finale bem brasileiro, alegre e canalha, sobre o absurdo ocorrido com a derrota do bolsonarismo e a tentativa de golpe.
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