45 anos de Sandinista! do The Clash

Luis Fernando Brod
6 minutos de leitura
The Clash - Sandinista!

“Sandinista!”, lançado pelo The Clash em dezembro de 1980, é aquele tipo de obra que divide opiniões à primeira vista, mas conquista qualquer um que mergulhe sem medo na sua vastidão. São três discos, 36 faixas, um laboratório sonoro que parece ter explodido nas mãos da banda — e, ao mesmo tempo, uma declaração política, estética e emocional sem precedentes no punk. Se “London Calling” já tinha mostrado que o Clash não cabia mais dentro de rótulos, “Sandinista!” escancara de vez essa inquietação criativa.

A gestação do álbum foi caótica de propósito. Joe Strummer e Mick Jones estavam obcecados com a ideia de expandir ao máximo as fronteiras do grupo. Queriam reggae, dub, gospel, proto-rap, calypso, rockabilly, experimentações eletrônicas, colagens, improvisos — tudo convivendo no mesmo universo. Mais do que isso: queriam que o disco soasse como o mundo real, com ruídos, excessos e contradições. É por isso que “Sandinista!” nunca parece um projeto organizado; parece uma cidade viva, pulsando sem descanso.

As gravações ocorreram em Londres, Nova York e Kingston, e cada lugar deixou sua marca. Em Nova York, o Clash absorveu de perto o hip-hop que engatinhava nas ruas do Bronx e do Lower East Side. Em Kingston, aprenderam diretamente com engenheiros de reggae e dub como manipular camadas sonoras, ecos e atmosferas suspensas. Em Londres, davam forma aos experimentos, muitas vezes gravando de madrugada, com amigos, crianças, músicos jamaicanos e quem mais estivesse por perto. Essa mistura caótica é a espinha dorsal de “Sandinista!”.

The Clash em 1980

O título já deixava claro o tom político. Inspirado pelo movimento sandinista da Nicarágua, o álbum remete as tensões globais da época: desigualdade, militarismo, imperialismo, precariedade urbana. Mas Strummer nunca foi de pregar de modo direto; preferia construir narrativas e personagens, fazer observações de canto de olho, misturar poesia com raiva. É o que acontece em faixas como “Washington Bullets”, uma das peças centrais do disco, que comenta intervenções políticas pelo mundo com ironia fina, humor amargo e um arranjo que cai no reggae como quem cai no cotidiano.

Entre os destaques mais imediatos está “The Magnificent Seven”, um dos primeiros flertes do rock britânico com o rap — lançado meses antes de “Rapture”, do Blondie. Mick Jones rima sobre consumismo, rotina e alienação, embalado por uma linha de baixo hipnótica que remete diretamente ao funk americano. Já “Hitsville U.K.” surge como um pop doce e consciente, quase um manifesto de independência sobre a cena alternativa. “Somebody Got Murdered”, por outro lado, retoma a veia mais direta da banda, com uma melodia melancólica sobre a violência urbana que Strummer testemunhava diariamente.

A experimentação extrema dá ao álbum momentos improváveis, como o gospel de “The Sound of Sinners”, o dub profundo de “One More Time/One More Dub”, o clima infantil e lúdico de “Career Opportunities” regravada com crianças, e o mergulho instrumental de “Version City”. Nada parece seguir uma regra. E é justamente isso que faz “Sandinista!” funcionar: não como obra coerente, mas como uma espécie de biblioteca musical aberta.

O disco, no entanto, foi recebido com estranhamento. Três LPs eram demais para o mercado, demais para o punk tradicionalista e demais até para jornalistas que tinham acabado de coroar “London Calling”. Mas o Clash insistiu, inclusive abrindo mão de parte dos royalties para que o álbum fosse vendido a preço reduzido. A banda queria que ele circulasse, que chegasse a jovens sem dinheiro, que ultrapassasse o cerco da indústria.

Com o tempo, “Sandinista!” deixou de ser visto como exagero para se tornar referência absoluta. Músicos de hip-hop, punk, eletrônico, reggae e indie encontram ali um ponto de partida. Produtores modernos estudam suas camadas de dub. Bands de rock percebem que a ousadia pode — e deve — existir mesmo quando o mundo espera repetição.

“Sandinista!” não é para ser entendido de uma vez só. É caótico, longo, provocador e, justamente por isso, fascinante. É o tipo de álbum que não pede licença para existir — ele simplesmente invade, ocupa e transforma. Uma obra que marcou a despedida do Clash de qualquer limite estilístico e mostrou, sem dúvida nenhuma, que a banda era grande demais para caber dentro do punk. É o Clash em sua forma mais livre, mais política e mais inventiva. É excesso, é risco, é vida. É, talvez, o disco que melhor explica o espírito indomável de Joe Strummer.

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