Na segunda metade de 2024, o segundo jogo da aclamada franquia Silent Hill 2 havia ganhado um remake de proporções misteriosamente tenebrosas, expandindo a sensação de claustrofobia, conflito emocional e culpa.
De forma que agora o combate intenso se harmonizava com a mente, causando questionamentos que emergiam por meio da depressão de uma espiral descendente: qual o real propósito em continuar? Como lidar com o que está ali, aquilo que se vê e a culpa por ser? Em tempos atuais, não é de se surpreender que tal mídia tenha conquistado o público, principalmente o atual — alguns deles eram muito pequenos ou sequer estavam por aqui quando o original, em sua magnitude obscura e crua, foi lançado.
Curiosamente, a artista Ethel Cain (Hayden Silas Anhedõnia) lançou o single “Punish” um mês após o lançamento da mídia citada anteriormente. A letra é carregada de um dos temas recorrentes no trabalho da artista, falando dessa vez sobre o sentimento de culpa e angústia que atormenta um pedófilo que se automutila ao se deparar com um pecado de proporções imperdoáveis.
Em Silent Hill 2, James Sunderland lida não apenas com o fato de ter de aventurar-se nas profundezas do pior que há em si e nos “sobreviventes” que vagam pelos arredores daquele local infestado de manifestações do inconsciente de quem vai, mas também, em seu objetivo de procurar sua esposa falecida há dois anos naquele lugar, ele precisa confrontar uma culpa e um ato imperdoável que o desestabilizam cada vez mais. Embora o crime de James e o do eu lírico no single de Ethel citado anteriormente sejam de naturezas diferentes, ambos compartilham a temática da sexualidade e depravação.
Janeiro abre as portas de 2025, e é hora de a polêmica “Punish” abrir espaço para suas colegas de tracklist darem as caras no álbum completo Pervets. O lançamento espanta não apenas a fanbase que surgiu no boom do aclamado Preacher’s Daughter, lançado em 2022, mas também atrai um público muito além dessa base anterior.
A musicista explora aqui uma nova sonoridade, embarcando nas entranhas do gênero drone e dark ambient, a fim de trazer a experiência da culpa e da depressão de forma ainda mais sombria, gerando estresse. O barulho e o spoken word transmitem a sensação de perda de sentido em torno de termos que são jogados ao ouvinte, enquanto o julgamento, em harmonia com o caos dissonante de todos esses elementos, faz o ouvinte sentir o inferno astral do eu lírico em uma viagem sem escalas à destruição da mente que antes foi dominada pelo excesso de prisão de desejos e sentimentos oprimidos, pela perda do direito à evolução, da tentativa e erro, das consequências da implosão através de um pecado original.
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Akira Yamaoka esteve presente de 1998 até 2008 na produção das trilhas sonoras da franquia Silent Hill. Em seu trabalho, tanto com a Team Silent (departamento de desenvolvedores responsável pela criação do primeiro ao quarto jogo/prequela da franquia) quanto com a própria Konami em Silent Hill: Homecoming, o músico explorou diversos elementos presentes nos álbuns que compunham a trilha sonora. No entanto, o elemento noise sempre foi a chave do sucesso para que o incômodo do jogador, ao experienciar Silent Hill, refletisse o mesmo sentimento de medo e aflição dos personagens. Com teor ora industrial e caótico, esse elemento expandia a sensação de claustrofobia por meio da perturbação dos próprios sentimentos reprimidos que cobravam seu lugar aos protagonistas ali presentes. O mesmo pode ser dito de Pervets, onde a temática do LP de Hayden consegue trazer um clima tão explicitamente dissonante quanto as nuances de temas já explorados pelos jogos citados: luto, dor, tristeza, a prisão do destino, o arrependimento de não ter feito, assim como as consequências do abuso e da sexualidade reprimida.
A ideia do noise é justamente trazer, por meio da misofonia, essa distinção e similaridades de experiências caóticas ao ouvido e à mente humana daquele que acompanha tal jornada sonora sem distração. A prisão da mente é aterradora porque, mesmo as pessoas mais quietas, possuem mentes extremamente barulhentas. Em “Pulldrone”, a intensidade de sons conhecidos do nosso dia a dia se funde ao ato da desolação através do autoconhecimento e do não pertencimento ao mundo alheio conforme as expectativas previamente impostas. Uma confusão mental que explode sem precedentes, permanece e não dá sinais de saída, até que, de repente, sem fade out, a faixa “Etienne” surge, demonstrando outra grande similaridade com Silent Hill por meio da melancolia que o piano/teclado evoca em acordes menores, junto ao violão, que, tocado de maneira simples, traz na calmaria — mesmo que em profunda tristeza — uma sensação estranha de nostalgia ao que vos fala sonoramente sobre algo pessoal, embora eu não consiga elaborar aqui.
Em “Houseofpsychotiwomn”, o eu lírico expressa o amor por alguém muito jovem de maneira obsessiva, a ponto de, ao repetir que o(a) ama, essas palavras ecoarem tão fortemente em crescendo que chegam a ser sufocantes, tanto para o próprio ouvinte quanto para o personagem que narra a história por meio de seus devaneios e angústias. A tensão sexual em “Vacillator” explora esses limites já ultrapassados de maneira explícita, chocando o ouvinte no contraste entre as intenções de abusador e vítima, culpa e incerteza, prazer e arrependimento — uma verdadeira viagem ao inferno.
Em “Thatorchita”, percebi algumas similaridades com minha própria jornada musical ao longo dos anos. A distorção que inicia a música lembra, de forma breve, a que inicia “Drown In Ashes”, do álbum Monotheist (2006) da banda Celtic Frost, na qual, coincidentemente, a faixa também fala da frustração de forma carnal e decadente como consequência de amar — talvez o álbum mais expressivo da banda oitentista de black metal. A segunda referência vem das consequências da tentativa de suicídio em “Hurt”, faixa que encerra o clássico The Downward Spiral (1994) da banda de industrial rock/metal Nine Inch Nails. Nela, o eu lírico, personagem que compõe o álbum conceitual, demonstra arrependimento em meio a uma vida de consequências geradas pela autodestruição e impulsividade, culminando em um possível fim de pura desolação, ameaçando realizar tudo isso novamente.
Entretanto, conforme a música segue instrumentalmente, sem nenhuma descrição de ato sobre o destino daquele que tentou dar fim à própria vida, o crescendo para acordes maiores revela um ar de esperança e redenção que pode ser confirmado com uma fala ouvida logo no final da faixa: “Eu não quero mais morrer”. Mas estaria ele vivo ou morto? O que realmente morreu? Seu corpo físico? Ou sua culpa, dando lugar ao desejo de seguir em frente? Os elementos de shoegaze e post-rock presentes na segunda metade da faixa de 7:24 minutos sugerem um ar de esperança por meio de uma imagem religiosa para quem ouve. Ele teve sua redenção. O que poderia ser esse “seguir em frente”? O ressurgir em uma nova vida ou a continuidade nesta, mesmo com os julgamentos da sociedade sobre seu terrível pecado cometido?
Bem, isso pode ser respondido na faixa seguinte, “Amber Waves” (11:32). Aqui, o personagem nada mais sente por seu antigo desejo; segue livre, vivendo entre tristezas e dores. Talvez aqui tenhamos um final em aberto, entre diversas possibilidades? Afinal, a vida é um livro aberto.
Seja pela temática sombria e polêmica, onde até mesmo a redenção é julgada por uma sociedade de mentalidade extremamente punitiva e que desafia a moral do próprio público, seja pela grandeza da minutagem, que afasta os ouvintes que vieram pela explosão pop do álbum anterior, Ethel Cain segue em um novo capítulo de experimentos e tentativas em sua carreira. Coincidentemente, Andreas Kisser (Sepultura) mencionou que o fã “deveria ir se foder” quando se trata de escolhas artísticas. Nessa filtragem, Ethel segue mais um novo capítulo de sua trajetória.
É uma viagem pelas profundezas da mente, assim como os jogos de Silent Hill. Por mais que se questionem sobre um verdadeiro final, é aquele que você experimentou ou desejou, independente da vontade popular. Estaria James vivo e recomeçando uma nova vida ou se “afogou” em um mar de culpa eterna mesmo depois de encarar seu próprio amor e as consequências de seus atos?
Pervets é um álbum que se ajusta, independentemente dos atos do personagem deste trabalho ou de alguns dos personagens dessa franquia. Não importa se James, o vilão Walter Sullivan ou até mesmo Alex Shepherd, cujos “erros” são resultados de um lar tirânico, abusivo e conservador. É apenas você quem decide onde e como seguir. O pecado e a culpa seguem o mesmo caminho, mas quando se distanciam ao tomarem rumos diferentes, a última citada se transforma no perdão — e falo do perdão de si mesmo.Ou
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