Ave Noturna, um clássico esquecido que está completando 50 anos.

Luis Fernando Brod
9 minutos de leitura
Fagner/Ave Noturna. Foto: Reprodução Youtube.

Raimundo Fagner é um dos artistas mais singulares da música brasileira. Nordestino de Orós, no sertão cearense, ele soube desde cedo transformar sua origem em linguagem universal, transitando entre a tradição e a modernidade, entre a poesia intimista e a canção popular. Nos anos 1970, ao lado de Belchior, Ednardo e outros nomes, ajudou a consolidar o chamado “Pessoal do Ceará”, um movimento que levou para o eixo Rio-São Paulo uma nova leva de compositores nordestinos. Mas, se Belchior ficou marcado pelo lirismo de crônicas urbanas e Ednardo pelo viés mais folk, Fagner encontrou na intensidade interpretativa o seu diferencial: cantava como quem sangrava, e era isso que o tornava inconfundível.

O disco Ave Noturna, lançado em 1975, é uma peça central para entender sua trajetória. Gravado pela Continental, com produção de Carlos Alberto Sion, o álbum chegou num Brasil sob a ditadura militar, no governo de Ernesto Geisel. O regime ensaiava a chamada “abertura lenta e gradual”, mas ainda havia censura, perseguições e um clima de incerteza. A música, nesse contexto, era um espaço de resistência simbólica. Muitos artistas encontravam maneiras sutis de falar do país ou simplesmente afirmavam sua identidade cultural como forma de contrapor-se ao silenciamento. É nesse cenário que surge Ave Noturna: um disco que não se ergue como panfleto, mas cuja própria ousadia estética — unir poesia, guitarras elétricas e tradição nordestina — já era um gesto político.

Capa do disco Ave Noturna de 1975.

O repertório é revelador. O álbum abre com “Fracassos”, uma faixa que resume a dramaticidade de Fagner, interpretada em tom confessional, entre o lamento e a raiva. Em seguida, “A Palo Seco”, de Belchior, funciona como uma espécie de manifesto: dura, cortante, despojada de ornamentos, representando uma nova forma de cantar o Brasil. A versão de Fagner amplifica ainda mais esse espírito, com sua voz rouca e visceral, tornando-se uma das leituras definitivas da canção.

Outras faixas também constroem esse mosaico. “Última Mentira”, parceria com Capinam, é intensa e amarga, trazendo um diálogo entre o lírico e o popular. “O Astro Vagabundo”, feita com Fausto Nilo, reflete a inventividade de ambos, equilibrando melodia moderna com a cadência nordestina. “Riacho do Navio”, clássico de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, ganha uma releitura ousada, misturando baião com guitarra elétrica e bateria de rock — uma síntese que antecipava a estética híbrida que muitos outros artistas explorariam mais tarde. Já “Antônio Conselheiro (Bumba Meu Boi)” evoca o imaginário de Canudos, resgatando uma figura de resistência contra o poder estabelecido, o que, dentro da conjuntura de 1975, tinha uma leitura simbólica evidente.

A faixa-título, “Ave Noturna”, composta com Cacá Diegues, acrescenta uma camada cinematográfica ao disco, quase como uma trilha imaginária que amplia os horizontes poéticos do álbum. A presença de parceiros ilustres como Belchior, Capinam, Fausto Nilo e Cacá Diegues mostra o quanto Fagner já se inseria em um círculo criativo de alto nível, capaz de dialogar com o cinema, a literatura e a nova canção brasileira.

Os músicos que participaram da gravação ajudaram a dar ao disco seu caráter singular. Toninho Horta trouxe sua sofisticação harmônica na guitarra, Robertinho Silva e Chico Batera deram sustentação rítmica de primeira linha, Paulo Moura e Chiquinho de Moraes assinaram arranjos de sopros e cordas. Até o grupo Vímana, que tinha entre seus integrantes Lulu Santos e Ritchie, participou do álbum em duas faixas, acrescentando uma pegada de rock progressivo e urbana. É um encontro raro: um intérprete nordestino, de voz rascante e marcada pelo baião, cercado por músicos da nata instrumental brasileira, além de jovens que depois brilhariam no pop nacional.

Fagner. Foto de encarte do disco Ave Noturna.

Apesar de todas essas qualidades, Ave Noturna não teve o alcance comercial que merecia. Vendeu cerca de oito mil cópias, um número considerado baixo para a época. Fagner chegou a se queixar da falta de apoio da gravadora para a divulgação, o que limitou sua circulação em shows e turnês. Não houve uma grande campanha promocional, e o disco acabou vivendo mais de sua repercussão crítica e do boca a boca do que de resultados de mercado. A crítica, por sua vez, percebeu a importância do álbum: foi eleito um dos melhores de 1975 por publicações especializadas, elogiado pela forma como unia tradição e modernidade.

Com o passar dos anos, Ave Noturna passou a ser reconhecido como um disco de transição fundamental na carreira de Fagner. É nele que o cantor encontra um ponto de equilíbrio entre a raiz nordestina e a vontade de experimentar sonoridades contemporâneas. Se em discos posteriores ele atingiria maior popularidade, sobretudo no fim da década de 1970 e início dos anos 1980, foi em Ave Noturna que se consolidou como um artista com voz própria, não apenas um intérprete regional, mas um cantor capaz de dialogar com a MPB e com a cena nacional.

A influência do álbum pode ser sentida em vários artistas que vieram depois. O modo como Fagner reinterpretou Luiz Gonzaga ajudou a abrir caminho para que novos músicos enxergassem o baião e o xote como gêneros vivos, prontos para serem reinventados — um passo que artistas como Elba Ramalho, Zé Ramalho e Alceu Valença também dariam em suas carreiras, cada um à sua maneira. Do ponto de vista vocal, sua entrega visceral influenciou uma geração de intérpretes que não tinham medo de cantar com imperfeição ou excesso, mas sim com verdade. Axl Rose, dos Guns N’ Roses, chegou a citar Fagner como influência indireta, depois de ouvir seus discos em fitas que circulavam entre músicos nos anos 1980, impressionado justamente pela intensidade vocal. No Brasil, cantores como Raimundo Sodré e, em certa medida, Lenine, herdaram essa disposição de unir tradição nordestina a sonoridades modernas sem medo de arriscar.

Cinquenta anos depois, Ave Noturna continua sendo um disco atual. Não está entre os mais lembrados pelo público em geral, que costuma recordar os grandes sucessos românticos de Fagner, mas entre críticos, músicos e pesquisadores, é visto como uma obra-prima de sua fase inicial. É um trabalho que envelheceu bem porque não se apoia em fórmulas fáceis, mas em escolhas corajosas. Ouvir o disco hoje é revisitar um momento em que a música brasileira buscava novos caminhos, e Fagner, com sua voz rasgada e sua postura inquieta, ousava mostrar que o Nordeste podia dialogar de igual para igual com a vanguarda urbana.

Mais do que um retrato de época, Ave Noturna é uma declaração de identidade. É a prova de que Fagner não se limitou a seguir tendências, mas procurou criar a sua própria — ainda que isso lhe custasse, no curto prazo, vendas modestas e reconhecimento restrito. O tempo, no entanto, tratou de reposicionar o álbum: hoje, ele é lembrado como um clássico, não apenas da discografia de Fagner, mas da música brasileira dos anos 1970.

Nosso editor Luis Fernando participou de uma live no canal Nau à Deriva, onde eles debateram sobre o disco, sua importância e relevância.

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