Em 17 de junho de 1985, o Marillion lançou seu terceiro disco de estúdio, “Misplaced Childhood”, apostando em um formato pouco popular à época: o álbum conceitual.
Na contramão das tendências da metade dos anos 80, a banda decidiu estruturar o trabalho como uma narrativa contínua, com temas que abordam perda, memória e amadurecimento. O disco rapidamente se tornou o mais bem-sucedido comercialmente da banda, sustentado por dois singles de forte apelo popular: “Kayleigh” e “Lavender”.
Mas por trás do êxito nas paradas, “Misplaced Childhood” revelou um grupo em plena evolução criativa, ajustando influências e buscando uma identidade própria.
O disco que quase não aconteceu
Após o sucesso relativo de “A Script for a Jester’s Tear” (1983), o Marillion enfrentou dificuldades com seu segundo álbum, “Fugazi”, lançado em 1984. Apesar de artisticamente mais ambicioso, o disco teve vendas abaixo do esperado e levou a EMI a reconsiderar o contrato com a banda. Sem saber da hesitação da gravadora, o grupo seguiu trabalhando em novas composições, apostando alto em um projeto conceitual em um momento de rejeição ao formato.
A busca por um produtor se mostrou difícil. A proposta do álbum, com estrutura contínua e poucas chances de singles, não atraiu nomes de peso.
O cenário mudou com a chegada de Chris Kimsey, conhecido por trabalhos com os Rolling Stones e também como engenheiro no “Brain Salad Surgery” do ELP. Kimsey ajudou o Marillion a abandonar imitações excessivas do Genesis e trouxe leveza à produção, sem descartar a sofisticação dos arranjos.
Com orçamento apertado, o disco foi gravado no estúdio Hansa, em Berlim Ocidental, e finalizado por cerca de £ 74 mil – menos da metade do custo de “Fugazi”. A economia não comprometeu o resultado. O som final uniu elementos do prog setentista com timbres discretos dos anos 80, sem soar datado.

Um fluxo autobiográfico em dez faixas
As letras foram todas compostas por Fish, vocalista da banda, e nasceram de forma fragmentada, mas com uma lógica narrativa coesa. Em entrevistas, Fish disse ter idealizado o conceito durante uma longa viagem de LSD. Mas os versos ganharam forma durante a gravação.
O álbum trata da infância perdida como metáfora para a desilusão adulta, misturando experiências pessoais, vícios, frustrações românticas e crises existenciais. A estrutura segue o modelo de suíte. As faixas são interligadas, e algumas, como “Bitter Suite”, são divididas em subseções nomeadas.
Apesar do formato pouco amigável para o rádio, o disco surpreendeu nas paradas. “Kayleigh” chegou ao segundo lugar no Reino Unido. A canção ajudou a popularizar o nome da banda fora do circuito progressivo e se tornou um dos maiores sucessos do grupo.
“Lavender”, outro momento acessível, alcançou o top 5 britânico e contribuiu para o álbum atingir o primeiro lugar em vendas no Reino Unido. O disco permaneceu 41 semanas nas paradas britânicas, o maior tempo de um álbum do Marillion até hoje.
Mesmo com o bom andamento da gravação, os bastidores do disco foram marcados por tensões entre Fish e os demais integrantes. Em determinado momento, Fish acusou Steve Rothery de reter ideias para um futuro disco solo, gerando um confronto físico entre os dois.
Rothery teria composto grande parte das bases instrumentais de “Misplaced Childhood”, segundo entrevistas posteriores. A relação entre o vocalista e o guitarrista nunca mais se recuperaria, e Fish deixaria a banda em 1988.
Musicalmente, o álbum combina melodias simples, ritmos lentos e climas etéreos com forte presença dos teclados de Mark Kelly. A guitarra de Rothery não aposta em virtuosismo, mas em passagens líricas e espaçosas, favorecendo a construção de ambiente. Os vocais de Fish estão mais seguros do que nos discos anteriores. Seu estilo teatral ganhou nuances mais precisas e menos derivadas.
Ainda há resquícios do drama excessivo, mas o tom pessoal e a coesão do disco ajudam a sustentar a narrativa.
“Misplaced Childhood” foi pensado como uma obra única, e muitas faixas perdem força quando ouvidas fora do contexto do álbum. A fluidez entre as músicas cria um efeito contínuo, próximo do que o Pink Floyd havia feito com “The Wall” ou “The Dark Side of the Moon”. Mesmo as canções mais populares, como “Kayleigh”, ganham outra dimensão dentro da sequência sonora do disco completo. Ouvir o álbum inteiro ainda é a forma mais eficiente de compreender sua proposta estética e temática.
Quarenta anos depois, o que resta?
“Misplaced Childhood” continua sendo o ponto de maior unidade artística do Marillion com Fish, antes da ruptura interna definitiva. Ao mesmo tempo pessoal e acessível, o disco permanece relevante por sua estrutura bem resolvida e pela ousadia de sua proposta.
Em vez de buscar grandiosidade, a banda optou por introspecção, combinando ambição progressiva com leveza melódica. Quarenta anos depois, o álbum ainda serve como uma boa porta de entrada para o neoprog britânico da década de 1980.
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