A epopeia marítima do Iron Maiden em “Rime of the Ancient Mariner”

Luis Fernando Brod
6 minutos de leitura
Iron Maiden. Crédito: Ross Marino/Getty Images.

Em 1984, o Iron Maiden já não precisava provar mais nada. Após o impacto de The Number of the Beast (1982), a banda ocupava um lugar central no heavy metal mundial. Ainda assim, carregava um rótulo incômodo: o de “adoradores do diabo”, uma leitura superficial que ignorava a complexidade de suas composições e o interesse recorrente por literatura, história e narrativas épicas. Foi nesse cenário que Steve Harris, baixista e principal compositor do grupo, idealizou uma obra que ampliaria os limites do gênero e ajudaria a desmontar essa caricatura: “Rime of the Ancient Mariner”.

Faixa de encerramento de Powerslave, a música não chamava atenção apenas pelo tamanho. Com treze minutos e trinta e oito segundos, ela se apresentava como uma verdadeira travessia sonora, estruturada em atos, climas e mudanças de intensidade. A inspiração vinha de um território pouco usual para o metal: o poema romântico The Rime of the Ancient Mariner, de Samuel Taylor Coleridge, publicado em 1798. No texto original, um marinheiro anônimo mata um albatroz sem razão aparente e atrai para si e para sua tripulação uma maldição devastadora. Cercado pela morte e pela sede, ele só encontra redenção ao reconhecer o valor de toda forma de vida, sendo condenado, a partir daí, a vagar pelo mundo narrando sua história como advertência moral.

A escolha desse poema não deixava de soar inesperada, mesmo para um compositor que já havia buscado inspiração em ficção científica (Duna), ópera (O Fantasma da Ópera) e personagens urbanos fictícios. Em entrevista à Metal Hammer em 2008, Harris admitiu não se lembrar exatamente do motivo que o levou ao poema de Coleridge. Já Bruce Dickinson, em conversa com a revista francesa Enfer ainda em 1984, apresentou uma leitura mais direta: cansado das acusações de satanismo, Harris teria visto no poema uma forma clara de reforçar que o Iron Maiden falava, na verdade, sobre escolhas, consequências e respeito — inclusive ao que muitos chamariam de divino.

Steve Harris. Crédito: Paul Atkins/Getty Images

A construção de “Rime of the Ancient Mariner” começou ainda na pré-produção de Powerslave, quando a banda se reuniu em Jersey para trabalhar ideias. Fiel ao seu método, Harris se isolou para desenvolver a espinha dorsal da composição. Adrian Smith explicou em diversas ocasiões que o processo criativo do Maiden funcionava a partir de ideias individuais, lapidadas coletivamente — com a ressalva de que Harris costumava apresentar músicas quase prontas, deixando pouco espaço para grandes alterações estruturais.

Embora a semente tenha sido plantada em Jersey, foi durante as gravações no Compass Point Studios, nas Bahamas, que a música ganhou forma definitiva. Ali, a narrativa se encaixou com precisão à dinâmica sonora: riffs pesados abrem a viagem, dão lugar a passagens mais sombrias e cadenciadas, interlúdios falados e momentos de tensão contida, até que a faixa se reconstrói em um final grandioso, acompanhando o arco completo do poema.

Quando Harris mostrou a composição ao restante da banda, não houve dúvidas. Adrian Smith lembra que, ao ouvir a ideia, ficou claro que estavam diante de algo diferente de tudo o que já haviam feito. A empolgação foi tamanha que ninguém se deu conta da duração real da faixa. A revelação veio pelas mãos do produtor Martin Birch, ao cronometrar a gravação: treze minutos e trinta e oito segundos. O espanto inicial logo deu lugar à constatação de que, especialmente ao vivo, o tempo parecia simplesmente desaparecer.

“Rime of the Ancient Mariner” nunca foi lançada como single, mas se tornou um dos momentos centrais da turnê World Slavery (1984–1985). Como o marinheiro condenado a contar sua história, a música se recusou a ficar no passado: voltou ao repertório em Somewhere Back in Time, no fim dos anos 2000, e reapareceu mais recentemente na turnê comemorativa Run for Your Lives. Dentro da discografia do Maiden, ela estabeleceu um novo parâmetro de ambição, superado apenas décadas depois por “Empire of the Clouds”, com seus dezoito minutos.

Ao longo dos anos 1980, o Iron Maiden seguiria explorando caminhos cada vez mais amplos, flertando com sintetizadores e conceitos mais fechados em álbuns como Seventh Son of a Seventh Son (1988). Ainda assim, “Rime of the Ancient Mariner” costuma ser lembrada como o ponto em que essa ousadia se manifestou de forma mais clara. Quase quinze minutos de música sem excessos ou espaços vazios, conduzidos como uma narrativa contínua, que não apenas expandiu os limites do heavy metal, mas consolidou o Iron Maiden como uma banda disposta a ir muito além do óbvio.

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