50 anos depois, No Woman, No Cry de Bob Marley ainda tem a magia e a espiritualidade que moldaram o artista

Luis Fernando Brod
5 minutos de leitura
Bob Marley. Crédito: Reprodução Facebook.

Aos 50 anos de existência, “No Woman, No Cry” segue como um dos grandes hinos de esperança da música popular. Difícil imaginar que essa canção, hoje tão universal, começou como uma faixa discreta no repertório dos Wailers. Mas foi assim: uma composição que nasceu tímida, cresceu devagar e acabou atravessando fronteiras, línguas e gerações até ganhar lugar definitivo no coração do público.

Quem volta à gravação original de “Natty Dread”, de 1974, pode até se surpreender. Ali, a música ainda não tinha o brilho e a solenidade que a tornariam imortal. Jean Roussel assinava arranjos de clima quase etéreo, com órgão Hammond tímido e caixa de ritmo suave. Em pouco mais de três minutos, a faixa parecia apenas mais um capítulo dentro do disco. A transformação viria depois, quando Marley descobriu como expandir sua estrutura e extrair dela uma emoção mais profunda — algo que a versão de 1975 revelaria por completo.

Mesmo na primeira gravação, porém, já havia o toque espiritual que caracterizava Marley. “No Woman, No Cry” é um documento afetivo, uma viagem de volta a Trenchtown, aos becos e pátios que moldaram sua adolescência. A letra revisita dificuldades reais, mas sempre com um olhar terno para as mulheres que mantinham as famílias e a comunidade de pé. Daí o famoso refrão, tantas vezes mal interpretado no Ocidente. Não se tratava de dizer “sem mulheres não há lágrimas”, mas de consolar alguém querido: “não chore, mulher; vai passar”. Um abraço em forma de música.

Bob Marley em 1975. Crédito: Dennis Morris, Adrian Boot, Kate Simon & others.

A história da autoria da canção adiciona outra camada de fascínio. Oficialmente, ela não é creditada a Bob Marley, e sim a Vincent Ford, um amigo de infância conhecido como “Tártaro”. Ford, que comandava a cozinha comunitária Casbah em Trenchtown, era uma figura essencial na vida de Marley — foi ali que o futuro astro matou muita fome na juventude e encontrou um ponto seguro durante a infância dura. Ao creditar “No Woman, No Cry” ao amigo, Marley garantiu que os royalties mantivessem a Casbah funcionando. A generosidade era real, mas havia também um detalhe prático: o compositor jamaicano queria afastar seu novo material da publisher Cayman Music, com quem tinha contrato. Assim, outros créditos para Ford e para sua própria família surgiriam nos anos seguintes.

Quando Marley e os Wailers entraram em turnê com “Natty Dread”, em 1975, estavam prestes a viver um dos momentos mais importantes de suas carreiras. E foi no palco, no Lyceum Theatre em Londres, que “No Woman, No Cry” finalmente ganhou sua forma definitiva. A versão ao vivo tem sete minutos de pura comunhão espiritual: o solo luminoso de Al Anderson, os vocais das I Threes, o público respondendo como se participasse de um ritual. Ali, a canção deixou de ser apenas música; tornou-se experiência. Por muito tempo, foi essa a versão reconhecida até mesmo por fãs veteranos.

As duas noites no Lyceum foram registradas com a ajuda do estúdio móvel dos Rolling Stones e deram origem ao clássico álbum “Live!”, de dezembro de 1975. Com “No Woman, No Cry (Live ’75)” como single, Marley consolidou sua imagem como o grande embaixador cultural da Jamaica. Era o início de uma fase criativa extraordinária, que levaria a obras como “Exodus”. Ele partiria cedo demais, em 1981, aos 36 anos, mas já tinha se tornado um símbolo global.

Bob Marley no Lyceum em 1975. Crédito: Reprodução.

A história da música, no entanto, ainda renderia disputas. Danny Sims, da Cayman Music, tentou reivindicar os direitos sobre “No Woman, No Cry” e outras composições atribuídas a Ford. Em 1987, um tribunal decidiu a favor do espólio de Marley. O desejo do artista prevaleceu: os royalties ficaram com quem ele havia escolhido, e a Casbah continuou servindo sua comunidade até a morte de Ford, em 2008.

Há uma última imagem curiosa que ajuda a fechar esse ciclo. Vivien Goldman, biógrafa de Marley, visitou a Casbah no fim dos anos 1970 e perguntou a Ford, cara a cara, se ele realmente havia escrito a canção. A resposta veio em forma de enigma: um sorriso maroto e a frase “Bem, o que você acha?”. Talvez a verdade esteja ali, nesse brilho nos olhos — no território onde memória, gratidão e mito se misturam para sempre.

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