Punk na Indonésia: Anarquismo e rebeldia como forma de sobrevivência

Marcelo Scherer
10 minutos de leitura
Fãs de punk no festival Thingyan, em Yangon na Birmânia. Crédito: Reuters.

Enquanto o punk e sua estética se tornam cada vez mais um nicho lucrativo para as lojas fast fashion em todos os cantos do mundo, e toda a sua essência tenha se reduzido a uma sessão com jaquetas de couro sintético com patch dos Ramones e camisetas dos Sex Pistols escritas “anarchy”, desbotadas de propósito em qualquer uma dessas lojas que têm “todos os estilos”, os principais centros urbanos e megalópoles insistem em querer primeiro subverter e desvalorizar qualquer tipo de cultura coletiva para depois transformar em um produto superacessível, vazio e lucrativo.

Uma vez apropriada e desprovida de qualquer valor cultural ou comportamental, qualquer forma coletiva de contracultura precisa primeiro ser ridicularizada e marginalizada, para depois virar matéria no Fantástico antes dos gols da rodada.

O punk no Ocidente virou um mero souvenir caricato, enquanto no Sudeste Asiático se tornou uma forma de resistência e sobrevivência coletiva em meio à barbárie violenta de ditaduras militares, totalitarismo, fundamentalismo e dogmas religiosos. Em Mianmar, por exemplo, os coletivos punks se organizaram e aderiram à luta armada contra a ditadura militar que tomou o país através de um golpe de Estado. Na Tailândia, Mianmar e Indonésia, lugares onde a miséria se expande de forma avassaladora, os movimentos anarquistas e punk se unem para garantir o mínimo de subsistência e solidariedade para a juventude totalmente desassistida pelo governo.

A Indonésia é um país gigantesco e muito complexo, tanto pela sua geografia quanto pela sua organização social, religiosa e política. Resistiu a processos colonizatórios e viveu uma transição democrática incompleta no final dos anos 90. Os militares, que antes lideravam o país em uma ditadura, continuaram a ocupar os altos cargos no governo.

O presidente atual, Prabowo Subianto, é um ex-general autoritário do exército indonésio, acusado de genocídio quando era ministro da Defesa e por causar revoltas mortais em 2019, após perder as eleições daquele ano. No início deste ano, o povo foi às ruas em protesto a mais uma ameaça de golpe militar, devido a uma mudança na legislação que permite a militares ocuparem cargos políticos sem se desligarem de suas atividades militares e de seu nível de hierarquia dentro das Forças Armadas.

Cada uma das mais de seis mil ilhas habitadas tem suas religiões e costumes próprios. Suas próprias regras e leis impactam diretamente os jovens e habitantes de cada uma dessas regiões. A grande maioria dos indonésios vive em situação de insegurança alimentar e sem moradia digna, totalmente desassistidos e desprovidos de qualquer política pública que lhes garanta o mínimo de subsistência.

Muitas dessas ilhas têm como fonte principal o turismo (e falo principal mesmo). Em alguns lugares, como Bali, por exemplo, cidades como Ubud, Seminyak e Kuta são um labirinto caótico desenhado por um mar de motocicletas, desprovidas de qualquer regra de trânsito e sinalização, e ruas sem pavimento, onde os templos hindus e as tendas de artesanato disputam espaço com superlojas da Starbucks. O cenário perfeito para qualquer filme cyberpunk dos anos 80.

A especulação imobiliária é a nova moda entre os turistas que querem investir seu dinheiro, uma vez que sua moeda acaba tendo muito mais valor em um país subdesenvolvido e conhecido por ser um dos lugares mais corruptos do mundo, onde as leis não valem nada. Aliás, elas têm preço. As praias estão cada vez mais poluídas com lixo e plástico deixados pelos turistas. Os locais, por sua vez, acabam vendo na reciclagem desse lixo uma oportunidade de garantir algum dinheiro para sobreviver. Resorts e hotéis cinco estrelas estão sendo construídos, invadindo a costa marítima e sem respeitar qualquer lei ambiental.

Desde a execução do golpe militar sangrento em 1965, que derrubou o Partido Comunista da Indonésia, os indonésios ficaram à parte da cultura jovem do Ocidente. Ficaram alienados ao que estava acontecendo no mundo. Os Beatles lançavam Help! e os Rolling Stones, Out of Our Heads. O movimento hippie explodiu. Woodstock aconteceu. No final dos anos 70, o punk se espalhou como uma peste pelos subúrbios e tomou conta das metrópoles como uma praga sem cura, com jovens cada vez mais dispostos a questionar e a chocar, procurando um motivo para existir e respirar em meio a tanta violência contra seus corpos, guerra e opressão. Enquanto tudo isso acontecia, a Indonésia estava lá, desconectada do mundo.

O punk chegou à Indonésia apenas no início dos anos 90, com dois principais nomes responsáveis pelo surgimento desse movimento: o Young Offender, banda que migrou do thrash metal, e o Antiseptic. Ambas cantando em inglês até então. A partir de então, os jovens tinham um ponto de partida para canalizar toda sua revolta, angústia e violência sofrida por um regime opressor e corrupto que os impedia de formar suas próprias opiniões e de criar suas próprias experiências de vida, justo na fase em que mais buscamos nossa identidade e nosso lugar de pertencimento no mundo.

Os punks, desde então, andam e vivem organizados sempre em grupos, literalmente para um proteger o outro. Caso contrário, são um alvo fácil dos militares. Se você for um punk nos lugares não turísticos da Indonésia, você vai preso, sem nenhum tipo de diálogo. Os coletivos se organizaram como forma de sobreviver à repressão imposta pelo fundamentalismo islâmico, alinhado à violência militar legitimada pelas autoridades — também militares — que se mantinham no poder por décadas.

Em Aceh, província situada na ilha de Sumatra, o povo está submetido aos preceitos da Charia, um código de leis islâmicas que controla questões como sexualidade, conduta moral, política e economia. O auge dessa repressão ocorreu em dezembro de 2011, quando 65 punks foram presos durante um show beneficente para crianças em Aceh e submetidos arbitrariamente a uma “reabilitação” moral, na qual tiveram seus moicanos raspados e suas roupas queimadas por policiais (substituídas por trajes militares), além de orações forçadas e um extensivo treinamento militar. A VICE tem um minidoc chamado Punk Rock vs Sharia Law que retrata com detalhes esse episódio bizarro. Vale muito a pena assistir.

Desde então, esses coletivos ganharam cada vez mais força e se tornaram verdadeiras comunidades independentes, compreendendo e alcançando cada vez mais a autonomia e a organização cantada pelo Crass lá no início do punk nos anos 70. Oficinas de música para crianças e jovens se multiplicaram dentro dos coletivos, além de grupos que ensinam serigrafia, tatuagem e desenho. Qualquer ofício independente e autônomo capaz de gerar um trocado para tentar garantir o mínimo de sobrevivência.

Os problemas da Indonésia e do subúrbio da Ásia estão bem longe de ter um final. Ditaduras tentam se alastrar cada vez mais, feito um câncer, em países subdesenvolvidos do Sudeste Asiático. Quando pensamos no punk como uma forma de resistência, de coletividade e organização baseados nos preceitos do anarquismo, podemos imaginar um horizonte distante onde a música possa deixar de ser apenas um pano de fundo de 30 segundos para a estupidez humana e possa causar reflexão e descontentamento.

Talvez o individualismo causado pelo capitalismo tardio, o emburrecimento geracional e o colapso climático possam acelerar tudo isso antes de chegarmos ao ponto de não mais retorno.

A música pode nos salvar, e precisamos de artistas e bandas que ajam de forma direta com suas mensagens urgentes. O rap e o punk podem ser essa ferramenta, e eu acredito nisso de forma talvez ingênua ou purista.

Esse discurso politizado estéril de sapatênis precisa ser ultrapassado e está sendo, por artistas novos que furam essa bolha e chegam ao mainstream.

Precisamos de muito mais Djonga, Kendrick Lamar, Fontaines D.C., Idles, Amyl and the Sniffers e Turnstile do que Bono Vox e Coldplays da vida.

Do punk 77, passando pelo crust, hardcore dos anos 90 e pelo d-beat, criei uma playlist com algumas das bandas mais importantes e interessantes da Indonésia. Aproveite — e lembre-se: punk is not dead!

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