Thee Hypnotics e o álbum inovador que nunca existiu

Luis Fernando Brod
15 minutos de leitura
Thee Hypnotics. Foto: Reprodução.

A história do Thee Hypnotics, banda britânica que marcou a lisergia dos anos 80 com sua fusão de garage rock e soul, é pontuada por momentos de glória e, por vezes, por uma resiliência quase estoica diante de adversidades. Em 1993, o lançamento de seu quarto álbum, “The Very Crystal Speed Machine”, prometia ser a porta de entrada para o mercado norte-americano, mas se transformou em um capítulo de intensos conflitos e uma turnê que desafiou os limites da camaradagem e da sobrevivência. Este período, rico em detalhes que parecem extraídos das melhores biografias do rock, oferece uma perspectiva sobre os desafios enfrentados por uma banda em ascensão, confrontada com as realidades da indústria musical e as tensões criativas.

O Thee Hypnotics, originário de High Wycombe, Inglaterra, cultivou uma sonoridade que reverenciava abertamente o garage rock de Detroit, com referências claras a bandas como MC5 e The Stooges. Essa paixão pelo som cru e visceral era complementada por uma devoção igualmente profunda à soul music e ao Rhythm & Blues norte-americanos das décadas de 60 e 70. Essa mistura singular permitiu à banda, liderada pelo vocalista Jim Jones, criar uma identidade sonora que se destacou no cenário musical entre 1989 e 1993, período em que lançaram quatro álbuns de estúdio.

A banda não demorou a chamar a atenção. Mark Arm, do Mudhoney, um dos pilares do grunge de Seattle, foi um dos primeiros a reconhecer o potencial do Thee Hypnotics. A seu pedido, o grupo se tornou a primeira banda britânica a ser contratada pela Sub Pop, a gravadora que lançou “Bleach” do Nirvana e “God’s Balls” do Tad. O álbum de estreia do Thee Hypnotics, “Live’r Than God”, foi lançado pela Sub Pop, colocando-os em um contexto musical de grande efervescência.

A imersão na cena de Seattle, conforme relatado por Julian Marszalek do Quietus, foi um período de descobertas e, para alguns integrantes, de desenvolvimento de hábitos que poderiam ser considerados antissociais. O álbum de estúdio seguinte, “Come Down Heavy” (1990), teve sua mixagem aprimorada por Jack Endino, produtor conhecido por seu trabalho com o Nirvana, após a banda inglesa se impressionar com sua assinatura sonora.

Foi através dessa conexão com a Sub Pop e a cena de Seattle que o Thee Hypnotics cruzou o caminho do The Black Crowes. Durante a turnê de “Shake Your Money Maker”, álbum de estreia dos norte-americanos em 1990, os membros do Black Crowes descobriram o som do Thee Hypnotics. Jim Jones recorda que, após uma sessão de escuta regada a LSD no ônibus da turnê, “Come Down Heavy” foi tocado repetidamente. A banda americana, segundo Jones, pareceu ver nos Hypnotics uma banda que havia “capturado o gênio do rock and roll numa garrafa”.

O encantamento foi tamanho que o The Black Crowes convidou o Thee Hypnotics para abrir seus shows na primeira turnê pelo Reino Unido. Essa experiência, nas palavras de Jones, foi um verdadeiro aprendizado sobre o que significava o “rock & roll de verdade”, exigindo performances intensas para conquistar o público.

Chris Robinson, vocalista do The Black Crowes, ofereceu-se para produzir o próximo trabalho do Thee Hypnotics. Essa promessa se concretizou anos mais tarde, em 1993, quando as bandas se reencontraram no festival de Glastonbury. Jones descreveu o encontro como uma continuação natural de uma conversa anterior, em uma tenda decorada com tapetes persas. As demos foram entregues, o contato mantido, e Robinson conseguiu um contrato com a American Recordings, pavimentando o caminho para a gravação na Califórnia.

A Espiral de Loucura na Sunset Strip e os Conflitos em Estúdio

A chegada do Thee Hypnotics à Sunset Strip, em Los Angeles, para a gravação de “The Very Crystal Speed Machine”, marcou o início de uma experiência que Jim Jones, o baterista Phil Smith, o guitarrista Ray Hanson e o baixista Will Pepper descreveram como uma “espiral de loucura” típica do rock’n’roll. Hospedados no sofisticado Sunset Marquis, a banda se viu imersa em um estilo de vida de excessos. Phil Smith recorda o tratamento VIP, enquanto Ray Hanson comenta sobre a rotina de consumo de álcool e drogas, incluindo uísque, cocaína, heroína e óxido nitroso, que se tornou parte do dia a dia. Jones complementa, observando que a banda “pegou um pouco emprestado” do estilo de vida de “rock star” ao qual os membros do The Black Crowes estavam acostumados.

Apesar do ambiente de indulgência, a banda seguiu para o Rumbo Recorders, em Canoga Park, Califórnia, um estúdio com um histórico notável, tendo recebido artistas como Guns N’ Roses, Kiss e Tom Petty. No entanto, o que parecia ser uma colaboração promissora entre o Thee Hypnotics e Chris Robinson começou a se deteriorar. O estúdio se tornou palco de um choque de egos, especialmente entre Robinson e a dupla Jones/Hanson.

Robinson, buscando moldar o som da banda e evitar influências de grupos de L.A., direcionou o Thee Hypnotics para uma sonoridade inspirada em Free e Humble Pie. Phil Smith recorda as longas sessões de ensaio de 11 horas na pré-produção e a insistência de Robinson em reescrever músicas que considerava muito semelhantes a outras bandas, como o Motley Crüe. Embora Jones e Hanson inicialmente se mostrassem defensivos, Smith reconhece que Robinson tinha um ponto, buscando a essência de uma “banda de rock and roll inglesa definitiva”.

Will Pepper observou que, pela primeira vez, as composições de “The Very Crystal Speed Machine” nasciam de um trabalho coletivo da banda, o que aumentava a resistência a interferências externas. Jones acusou Robinson de usar o sucesso de vendas do The Black Crowes – “Shake Your Money Maker” alcançou o quarto lugar na Billboard 200 e vendeu mais de 5 milhões de cópias – como argumento para impor suas ideias e decisões.

A tensão escalou quando Robinson decidiu afastar temporariamente Jones e Hanson do estúdio, alegando mau comportamento, incluindo o uso de drogas durante as sessões. Apesar dos conflitos, a banda reconheceu a pressão sobre Robinson para produzir um álbum que replicasse o sucesso do The Black Crowes. Jones admitiu que Robinson apostou alto na banda ao convencer a gravadora a investir. No entanto, para Jones e Hanson, acostumados ao controle total sobre seu trabalho, ceder as rédeas foi um desafio.

Pepper analisou a dinâmica entre os compositores do Thee Hypnotics e o produtor: “Chris era um personagem importante e um cara muito talentoso, mas ele sabe disso. E acho que Jim e Ray, juntos e individualmente, tentaram desafiá-lo algumas vezes. E com razão, porque a composição das músicas de ‘The Very Crystal Speed Machine’ foi muito colaborativa e é o único álbum em que as músicas não são todas do Hanson-Jones. Então, acho que se Chris tivesse feito sugestões sobre as músicas, a resposta teria sido: ‘Este é o meu bebê; não me diga como vesti-lo.'” Jones complementou, descrevendo a filosofia de Robinson como produtor de “mudar a forma como você compõe”, e a resposta de Robinson a qualquer objeção: “Quantos milhões de álbuns você já vendeu e quantos eu já vendi? Certo, vamos fazer do meu jeito.” Essa situação revela a presença de um forte ego de ambos os lados.

Talvez essas tensões tenham contribuído para a sonoridade poderosa de “The Very Crystal Speed Machine”. O álbum incorpora o espírito psicodélico das garagens de Detroit, a riqueza do Rhythm & Blues e a energia das apresentações ao vivo. Faixas como “Heavy Liquid” entregam uma intensidade marcante, enquanto “Caroline Inside Out”, com seu piano, apresenta uma veia jazzy, evidenciando a influência do The Black Crowes.

A Odisseia da Turnê: Um Ônibus Escolar e Contratempos Inesperados

Os problemas do Thee Hypnotics não se encerraram com a conclusão do álbum. A turnê de divulgação nos Estados Unidos, em 1993, se transformou em uma série de contratempos que testaram a resistência da banda. É importante recordar que a banda já havia enfrentado uma turnê desafiadora em 1990, quando, após um show em Mineápolis, um acidente de ônibus deixou Phil Smith gravemente ferido, resultando no cancelamento do restante da excursão e na substituição temporária por Rat Scabies, do The Damned.

Em 1993, a situação financeira se mostrou um obstáculo ainda maior. Problemas entre a American Recordings e sua distribuidora na Europa resultaram no corte do orçamento destinado à turnê do Thee Hypnotics nos EUA. Jim Jones revelou ao Quietus que, a menos que a banda fosse do porte de Danzig ou The Black Crowes, o suporte financeiro era inexistente. “Disseram que o álbum seria lançado, mas não haveria orçamento para a turnê, nem imprensa”, afirmou Jones.

Como se a falta de recursos não fosse suficiente, o ônibus de turnê fornecido pela gravadora quebrou próximo a Chicago, durante a viagem inicial da Califórnia para Nova York, onde a excursão deveria começar. Sem dinheiro e com a necessidade de se locomover pelo país, o empresário da banda encontrou a solução mais barata e, ironicamente, a mais desconfortável: em um leilão de veículos usados, ele arrematou um ônibus escolar amarelo, em condições precárias. O veículo não possuía ar-condicionado e tinha bancos de madeira. Jones recorda com humor que o empresário “retirou quatro fileiras de assentos e colocou um pouco de espuma, e era lá que deveríamos dormir”.

Naquele “lata sobre rodas”, a banda enfrentou uma onda de calor intensa, realizando toda a turnê sob essas condições. Em um ponto na Carolina do Norte, os membros da banda chegaram a dormir ao relento. A viagem pelo Kansas os colocou no meio de um tornado. Jones descreve a cena: “Olhei para o céu, parecia quase noite, e então olhei para o chão e vi o sol brilhando nele. Era como um daqueles filmes antigos do Bela Lugosi, em que os raios realmente cortavam o céu, sem parar. E então via as nuvens rodopiando e o ônibus começava a balançar de um lado para o outro.” Em outro momento, uma ave atravessou uma das janelas do ônibus, resultando em “penas e sangue por toda parte, seguidos por vento e chuva entrando pela janela. Parecia bastante apocalíptico.”

Apesar de todos os esforços, a turnê enfrentou baixas vendas de ingressos e dificuldades logísticas. Em algumas cidades, o álbum sequer estava disponível nas lojas, prejudicando a promoção. Apenas em Nova York e Los Angeles a banda conseguiu lotar os shows. No Viper Room, na Sunset Strip, a plateia contou com a presença de figuras como Johnny Depp, Cher e Harry Dean Stanton. Em Detroit, a participação de Scott Morgan, da Sonic’s Rendezvous Band, não foi suficiente para atrair um público significativo. Em San Diego, a cena de uma plateia diminuta se repetiu, até que Steve Jones, dos Sex Pistols, apareceu em sua Harley-Davidson, perguntou se eram do Thee Hypnotics, e após confirmar que “nenhum viadinho” havia aparecido, partiu.

Esses desafios, tanto na produção quanto na promoção, contribuíram para um desempenho comercial abaixo do esperado de “The Very Crystal Speed Machine” e, de alguma forma, afetaram a trajetória do Thee Hypnotics nos anos seguintes.

Em 2018, a gravadora Beggars Banquet lançou o box set “Righteously Re-Charged”, que reuniu os quatro álbuns da banda, marcando a primeira vez que “The Very Crystal Speed Machine” foi lançado no Reino Unido. Esse relançamento coincidiu com a reunião da banda após 20 anos, oferecendo uma oportunidade para Jim Jones refletir sobre o período de 1993 nos EUA. Ele descreveu a época como “emocionante”, um tempo de camaradagem entre as bandas. Ao olhar para os álbuns registrados pelo Thee Hypnotics, Jones os definiu, décadas após seus lançamentos, como “monstros peludos tocando grooves pesados em um coquetel de bebida e drogas ao pôr do sol”.

A história do Thee Hypnotics e de “The Very Crystal Speed Machine” é um lembrete de que o caminho para o reconhecimento no rock and roll raramente é linear. Conflitos criativos, desafios logísticos e a imprevisibilidade da indústria musical podem moldar a narrativa de uma banda tanto quanto sua música. No entanto, a capacidade de persistir, de encontrar a arte em meio ao caos, e de, anos depois, olhar para trás com uma perspectiva de camaradagem, revela a verdadeira essência da experiência do rock.

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