A virada de Gal Costa em águas profundas

Luis Fernando Brod
5 minutos de leitura
Gal Costa. Foto: Reprodução.

Após a efervescência da era dos festivais e o impacto cultural da Tropicália, Gal Costa atravessou a década de 1970 com uma discografia que, embora aclamada pela crítica e por um público mais específico da MPB, não alcançou a mesma ressonância popular de seus primeiros anos. Seus discos daquele período eram joias para apreciadores, mas aguardavam um novo momento para brilhar em uma esfera mais ampla. Foi em 1978 que essa maré começou a mudar, com o lançamento do álbum “Água Viva”.

Este trabalho, originalmente editado pela gravadora Philips, representou um ponto de inflexão na trajetória da cantora. Sob a direção estratégica do empresário e produtor Guilherme Araújo, conhecido por sua visão apurada e por moldar carreiras de grandes nomes, “Água Viva” foi concebido como um projeto para reconectar Gal com o grande público. A proposta era clara: popularizar o canto e a imagem da artista, sem comprometer sua essência.

Capa do disco Água Viva de Gal Costa.

“Água Viva” marcou a primeira vez que Gal Costa registrou em disco uma composição de Chico Buarque. E não foi apenas uma, mas duas canções que ganharam sua voz. A primeira, “Pois É”, uma parceria de Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de 1970, foi revisitada com uma nova leitura. A segunda, o bolero “Folhetim”, composta por Chico em 1977 para a trilha sonora da peça “Ópera do Malandro”, rapidamente se tornou um sucesso nas rádios, consolidando a presença de Gal nas paradas.

O álbum também antecipou a fase mais “tropical” que viria em 1979, ao revitalizar o samba “Olhos Verdes”, de Vicente Paiva. Esta canção, um clássico de 1950, havia sido um dos grandes êxitos de Dalva de Oliveira, cujos trinados agudos preencheram as ondas do rádio em uma era anterior. Gal, com sua interpretação, estabeleceu uma ponte entre gerações de divas da música brasileira.

A capa do disco, uma fotografia de Marisa Alvarez Lima, capturou a cantora submersa na piscina de sua casa no Rio de Janeiro. A imagem, que se tornaria um símbolo do álbum, remetia a ideia de renovação e imersão. Além da estética visual, “Água Viva” foi o palco para Gal apresentar ao Brasil a letra completa de “Cadê”. Escrita por Ruy Guerra e musicada por Milton Nascimento, a canção havia sido censurada em sua gravação original de 1973, presente no álbum “Milagre dos Peixes”. Cinco anos depois, a voz de Gal deu a “Cadê” a plenitude que a censura havia negado, um gesto de liberdade artística em tempos ainda restritivos.

O repertório do álbum navegou por diferentes texturas e emoções. A interpretação de “Vida de Artista”, de Sueli Costa e Abel Silva, gerou um burburinho nos bastidores, com a autora da melodia expressando, em conversas privadas, um certo descontentamento com a abordagem. Contudo, Gal também mergulhou novamente nas águas de Dorival Caymmi, um de seus mestres, ao gravar a canção praieira “O Bem do Mar”, de 1954, reafirmando sua conexão com as raízes da música baiana. Caetano Veloso, outro pilar em sua jornada artística, teve quatro de suas composições interpretadas por Gal.

Canções como o frevo “Qual É, Baiana?”, de Caetano Veloso e Moacyr Albuquerque (1971), e “Paula e Bebeto”, de Caetano Veloso e Milton Nascimento (1975), já eram conhecidas, mas ganharam nova vida na voz de Gal. No entanto, foram as inéditas “Mãe” e “A Mulher”, ambas de 1978, que resplandeceram com a força de sua interpretação. “Mãe”, em particular, transcendeu o tempo, tornando-se uma canção que atravessou gerações, tocando corações com sua mensagem atemporal.

Em “Água Viva”, Gal Costa também explorou a riqueza do Nordeste brasileiro, entoando “De Onde Vem o Baião”, de Gilberto Gil, uma música lançada no ano anterior pela cantora Anastácia. A artista também se entregou à cadência do xote roqueiro “O Gosto do Amor”, de 1978, em uma gravação marcante com o próprio compositor, Gonzaguinha.

A produção do álbum, sob a direção de Perinho Albuquerque, contou com a maestria de músicos como Jamil Joanes, Luizão Maia, Perna Fróes, Sivuca, Toninho Horta e Wagner Tiso, entre outros virtuoses. A colaboração desses talentos resultou em um trabalho coeso e de alta qualidade, que se tornou um dos títulos mais bem-sucedidos da discografia de Gal Costa, marcando o início de uma nova fase de reconhecimento e popularidade para a cantora.

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