Quando PJ Harvey transformou o caos em calma

Luis Fernando Brod
5 minutos de leitura
PJ Harvey. Foto: Reprodução.

“Stories from the City, Stories from the Sea” (2000) é o tipo de disco que parece nascer de uma encruzilhada emocional. Depois de mergulhar em abismos interiores e sonoridades angulosas em “To Bring You My Love” (1995) e “Is This Desire?” (1998), PJ Harvey chegou ao novo milênio com uma sensação de luz entrando pelas frestas.

O álbum, gravado entre Londres e Dorset, foi moldado sob o contraste de cidades agitadas e mares silenciosos — uma combinação que a própria artista assumiu como metáfora de sua vida naquele momento. E talvez seja por isso que tantos críticos vejam aqui o ápice de sua maturidade: é o som de alguém que finalmente entendeu que força e delicadeza podem coexistir.

A criação do disco começou em meio a viagens e mudanças de humor. PJ passava temporadas em Nova York, absorvendo o ritmo urbano, e voltava para a Inglaterra, onde se isolava para compor. Essa alternância acabou moldando o próprio conceito do álbum — histórias da cidade, histórias do mar —, com canções que transitam entre o barulho do cotidiano e a introspecção de quem observa o horizonte. Ela compôs a maioria das faixas sozinha, ao violão ou piano, mas contou novamente com a colaboração de Rob Ellis e Mick Harvey, parceiros de longa data que ajudaram a construir a base sonora equilibrada entre o cru e o melódico.

Se os discos anteriores eram marcados por experimentações sombrias, “Stories from the City…” soa mais direto, quase pop em alguns momentos. PJ Harvey nunca gostou muito do termo, mas reconheceu que este é seu trabalho mais “feliz”. Em entrevistas, ela disse que se sentia mais confiante, menos preocupada em provar algo — e que o disco reflete esse estado.

Há uma serenidade diferente em faixas como “You Said Something” e “A Place Called Home”, sem perder o peso emocional que sempre definiu sua escrita. “É o meu álbum de amor”, ela resumiu certa vez, não por tratar apenas de romance, mas por celebrar o prazer de estar viva, mesmo em meio ao caos.

A comparação com “Is This Desire?” ajuda a entender o salto. Enquanto o disco de 1998 é etéreo e inquietante, cheio de texturas eletrônicas e temas de isolamento, “Stories from the City…” abre o som, privilegia guitarras limpas e vocais mais frontais.

“Big Exit” e “Good Fortune”, logo nas primeiras faixas, já deixam claro que PJ estava mirando outro tipo de energia — algo mais físico, luminoso, urbano. Mas há também melancolia, como em “Horses in My Dreams”, onde a calmaria do piano ecoa a sensação de fim de jornada.

Uma curiosidade: as gravações ocorreram em um estúdio de Dorset e, em parte, no lendário Mayfair Studios, em Londres. Polly Jean controlava cada detalhe — do timbre das guitarras ao tom exato das backing vocals. Ela queria um som “limpo, mas não polido”, com a clareza de quem aprendeu a usar o silêncio tanto quanto o ruído.

E um dos momentos mais marcantes veio com a participação de Thom Yorke, do Radiohead, em duas faixas: “This Mess We’re In” e “One Line”. A química entre os dois foi imediata. Yorke gravou seus vocais à distância, mas a tensão entre suas vozes deu à canção uma atmosfera quase cinematográfica, contrastando ternura e desespero com perfeição.

O sucesso foi inevitável. O disco recebeu aclamação da crítica, ganhou o Mercury Prize em 2001 — vencendo nomes como Radiohead e Gorillaz — e ampliou o público de PJ Harvey sem que ela precisasse suavizar sua identidade. A recepção também refletiu um momento raro: uma artista que sempre caminhou à margem alcançando o centro das atenções sem trair sua essência. “Stories from the City, Stories from the Sea” não é apenas uma coleção de canções bem escritas; é um retrato de uma mulher em equilíbrio entre o ruído do mundo e a paz interior, entre o amor e a solidão, entre o urbano e o natural.

Talvez seja por isso que, mesmo décadas depois, ele continue soando tão fresco. É o disco em que PJ Harvey se permitiu sorrir — não por ter deixado de lado a dor, mas por finalmente tê-la compreendido.

Falamos sobre este disco no episódio do Redação Disconecta.

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