Em 1968, o mundo da música fervilhava com a psicodelia e o rock, mas no coração do blues, um gigante se mantinha firme. Chester Burnett, mais conhecido como Howlin’ Wolf, era a personificação da força bruta e da alma do delta. Sua voz, um uivo primal, e sua presença de palco, uma montanha de carisma, haviam moldado o blues elétrico de Chicago por décadas. No entanto, a Chess Records, sua gravadora de longa data, sentia a pressão de um mercado em constante mudança. Os jovens ouvintes buscavam novos sons, e o blues tradicional, embora reverenciado, precisava de uma roupagem moderna para alcançar essa nova geração.
Foi nesse contexto que surgiu “The Howlin’ Wolf Album”, um disco que se tornaria um dos mais controversos na discografia do artista. A ideia da Chess era simples: pegar o blues visceral de Wolf e infundi-lo com elementos de rock psicodélico e funk, na esperança de atrair o público que idolatrava bandas como Cream e Jimi Hendrix. Para isso, recrutaram músicos jovens e talentosos, como o guitarrista Pete Cosey (Miles Davies, Muddy Waters), que traria texturas sonoras inovadoras, incluindo o uso de wah-wah e fuzz, efeitos então na vanguarda do rock.
A gravação do álbum foi um choque cultural. Howlin’ Wolf, um homem de princípios e profundamente enraizado na tradição do blues, não se sentia à vontade com as experimentações sonoras. Ele via a música como algo direto, honesto, sem a necessidade de floreios eletrônicos ou ritmos sincopados que desvirtuassem a essência do blues. A famosa frase atribuída a ele durante as sessões de gravação, “This Ain’t No Blues!”, encapsula perfeitamente seu descontentamento. Ele não gostava do som, não se reconhecia naquelas batidas e naqueles timbres. Para ele, era uma traição à pureza da sua arte.
Embed from Getty ImagesDentro desse caldeirão de experimentação e resistência, a canção “Built for Comfort” ganhou uma nova vida. Originalmente composta por Willie Dixon, o prolífico compositor e baixista que foi a espinha dorsal da Chess Records, “Built for Comfort” já havia sido gravada por Howlin’ Wolf em 1961. A versão original era um blues clássico, com a voz poderosa de Wolf, a gaita marcante e uma seção rítmica sólida que servia de base para a narrativa de um homem que se orgulha de sua constituição física, feita para o conforto e o prazer. Era um blues direto, sem rodeios, que exibia a confiança e a virilidade características de Wolf.
Na versão de 1968, a canção foi submetida à visão “moderna” da Chess. A introdução, antes um riff de gaita e guitarra, foi substituída por um som mais denso, com guitarras distorcidas e um ritmo que flertava com o funk e o rock. O wah-wah de Pete Cosey adicionava uma camada psicodélica que era estranha ao universo de Wolf. A bateria e o baixo, embora competentes, adotaram uma pegada mais grooveada, afastando-se do shuffle tradicional do blues. A voz de Wolf, no entanto, permaneceu inabalável. Mesmo em meio a um arranjo que ele desaprovava, sua entrega era autêntica, sua presença vocal dominava, provando que a essência do bluesman era mais forte do que qualquer tentativa de modernização forçada.
“The Howlin’ Wolf Album” foi lançado com uma capa que trazia a infame citação de Wolf: “This is Howlin’ Wolf’s new album. He doesn’t like it. He didn’t like his first electric guitar either.” Essa capa, uma tentativa de marketing que transformava a aversão do artista em um ponto de venda, apenas sublinhava a tensão inerente ao projeto. A recepção do álbum foi mista. Críticos e fãs mais puristas do blues o rejeitaram, vendo-o como uma aberração. No entanto, alguns o consideraram um experimento corajoso, uma ponte entre o blues e o rock que estava por vir.
Apesar da controvérsia e do desgosto de Howlin’ Wolf, “The Howlin’ Wolf Album” e sua versão de “Built for Comfort” se tornaram um artefato fascinante na história da música. Ele representa um momento de colisão entre gerações e estilos, um testemunho da tentativa da indústria de adaptar lendas a novos tempos. Embora Wolf nunca tenha abraçado o disco, ele permanece como um exemplo de como a voz e a personalidade de um artista podem transcender até mesmo os arranjos mais estranhos, mantendo sua verdade e poder. A canção, em suas duas encarnações, mostra a versatilidade de uma composição de Willie Dixon e a capacidade de Howlin’ Wolf de imprimir sua marca permanente em qualquer melodia, mesmo quando o conforto do blues tradicional era trocado por uma sonoridade mais experimental.
Anos mais tarde, a canção “Built for Comfort” encontraria um novo lar e uma interpretação distinta nas mãos da banda britânica UFO. Conhecidos por seu hard rock melódico e enérgico, o UFO regravou a faixa em 1978, no álbum “Obsession”. A versão do UFO transformou o blues rústico de Wolf em uma peça de rock potente, com guitarras elétricas proeminentes, um ritmo mais acelerado e a voz de Phil Mogg adicionando uma camada de intensidade rock. Essa regravação demonstra a duradoura influência do blues e a capacidade de suas composições de transcender gêneros e gerações, sendo reinterpretadas e ganhando novas nuances em contextos musicais completamente diferentes, provando a universalidade da mensagem e da estrutura original de Willie Dixon.