C86 – A cassete que marcou o início do Indie Pop

Luis Fernando Brod
7 minutos de leitura
C86 Mixtape. Foto: Reprodução.

Em 1986, a revista britânica NME lançou uma fita cassete que, sem que muitos percebessem na época, redefiniria o panorama musical e cultural de uma era. Batizada de C86, a coletânea não era apenas um conjunto de canções: tornou-se um manifesto, o ponto de partida do que viria a ser conhecido como “música indie”.

Descrita como a inspiração para “mil bandas indie” e até como o “início do indie”, a C86 ultrapassou o propósito inicial de apresentar o pop underground com guitarras, transformando-se num gênero em si e revelando nomes como Primal Scream, The Jesus and Mary Chain e The Wedding Present.

A história da C86 começa alguns anos antes, em 1981, com a fita C81. Distribuída por encomenda postal, essa primeira coletânea reunia artistas recém-contratados pela gravadora Rough Trade. Apesar de limitada a um único selo, a diversidade sonora era notável, indo do jazz experimental ao ska.

O sucesso foi imediato: 30 mil cópias vendidas e um público ávido por novidades. Muito antes de plataformas como Spotify ou SoundCloud, as mixtapes ofereciam uma forma acessível de descobrir novos artistas — e os leitores da NME sabiam aproveitar bem essa oportunidade.

Mas, em 1986, o cenário dentro da revista havia mudado. A C86 surgiu como uma jogada estratégica em meio a disputas internas e à acirrada competição entre as publicações musicais britânicas. Quatro revistas semanais disputavam a atenção dos leitores, cada uma tentando “descobrir” a próxima grande tendência.

Nesse contexto, a C86 foi pensada como um produto que poderia criar um novo som, um estilo que a NME pudesse reivindicar como seu. A aposta deu certo: a fita se consolidou como um marco, hoje reconhecida até em plataformas como RateYourMusic.com como um subgênero legítimo.

Capa da mixtape C86.

A coletânea também refletia as tensões editoriais da época — as chamadas “Guerras do Hip-Hop” dentro da NME. Enquanto parte da redação se encantava com o rap emergente, outro grupo defendia a música com guitarras. A C86 foi, nesse sentido, uma resposta: uma tentativa de reanimar o interesse pela cena independente e contrapor-se à ascensão do hip-hop. Andrew Collins, ex-redator da revista, resumiu bem a proposta: a fita pretendia ser “a coisa mais indie que já existiu”.

O termo “pop” cabia perfeitamente à C86. Seu objetivo era distanciar-se do rock saturado da época — do pop rock excessivamente polido, da new wave dominada por sintetizadores e do glam metal norte-americano. Como observou o crítico Chris Nickson, a fita representava “um afastamento deliberado de um som movido a testosterona que havia sido parte essencial do rock por tanto tempo”. Apesar das guitarras em destaque, o espírito da C86 estava mais próximo do pop melódico dos Byrds, da energia direta dos Ramones e do brilho ensolarado dos Beach Boys.

O som da C86 misturava a atitude pós-punk a guitarras leves e melodias grudentas. Faixas como “Therese”, do The Bodines, “Law”, do Mighty Mighty, e “Velocity Girl”, do Primal Scream, poderiam facilmente figurar em playlists indie atuais — unindo melodias cintilantes a vocais carregados de emoção.

No entanto, reduzir a fita a esse estilo seria um equívoco: entre as 22 faixas, também havia espaço para a dissonância e a experimentação, como em “Buffalo”, do Stump, ou “Console Me”, do We’ve Got a Fuzzbox and We’re Not Afraid to Use It. À época, a coletânea chegou a ser criticada por soar “delicada” ou “afeminada”, mas tais rótulos ignoravam sua ousadia e a amplitude de sons que apresentava.

Outro ponto frequentemente levantado contra a C86 era o suposto nascimento de uma leva de bandas melosas e superficiais — marcadas por letras sentimentais e introspectivas. Essa visão, porém, desconsidera a carga política de muitos dos grupos presentes.

O McCarthy, por exemplo, era declaradamente marxista e abordava a alienação juvenil e as contradições do capitalismo com ironia e acidez. Já o Big Flame tomou emprestado o nome de um movimento socialista de Liverpool dos anos 1970, deixando clara sua filiação ideológica.

Além da dimensão política, a C86 foi pioneira em outro aspecto: a presença feminina. Amelia Fletcher, da Tallulah Gosh, lembrou que “era um movimento favorável ao feminismo. Muitas bandas tinham mulheres, e frequentemente em funções que até então eram raras, como baixistas e bateristas”. Martin Whitehead, da gravadora independente Subway, reforçou essa percepção: “Antes da C86, as mulheres eram vistas apenas como enfeites nas bandas. A fita mudou isso — havia mulheres organizando shows, escrevendo fanzines e dirigindo selos”. Assim, a C86 não foi apenas uma coletânea, mas um reflexo de seu tempo: uma reação à era Thatcher e um prenúncio da ascensão feminina na música alternativa.

A influência da C86 vai muito além das bandas que ajudou a projetar. Sua estética sonora e atitude continuam a influenciar profundamente a música indie contemporânea. O espírito da fita pode ser percebido em artistas como The Strokes, Franz Ferdinand e The 1975 — cuja faixa “Me & You Together Song” poderia, sem esforço, ter saído diretamente de uma das fitas originais.

Mais do que uma coletânea ou um movimento, a C86 foi o início de uma linguagem musical e cultural que permanece viva. Ela moldou não apenas o som de uma geração, mas a própria noção do que significa ser “independente” na música.

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