O som que veio do muro: como Iggy Pop moldou o pós-punk com “The Idiot”

Luis Fernando Brod
5 minutos de leitura
Iggy Pop em Berlim, 1977. Foto: Esther Friedman.

Quando ouvi The Idiot pela primeira vez, algo pareceu deslocado. Aquilo não era o Iggy Pop que eu conhecia. Não havia guitarras raivosas, nem o caos nu dos Stooges. Em vez disso, encontrei batidas mecânicas, sintetizadores arrastados, vozes soterradas por camadas densas de produção. Era 1977. Mas soava como 1980, ou até como algo que ainda não tinha nome. Descobri depois que esse disco foi feito em Berlim, com David Bowie ao lado, e que nasceu do esgotamento, não da euforia. Quando tudo à volta pedia silêncio, Iggy respondeu com um som novo — e, sem saber, abriu caminho para o pós-punk.

A história começa meses antes, quando Bowie convenceu Iggy a deixarem Los Angeles. O vocalista estava no limite. Tinha saído de uma internação psiquiátrica e tentava ficar sóbrio, enquanto Bowie se afastava da cocaína e do excesso. Foram para a Alemanha buscar anonimato, mas também para se reinventar. Berlim oferecia isso. Era uma cidade dividida, fria, com pouca cor e muitos ruídos industriais. Lá, os dois se hospedaram num apartamento modesto e começaram a trabalhar em estúdios improvisados até chegarem ao Hansa Tonstudio, a poucos metros do Muro.

No estúdio, cercados por concreto, Iggy e Bowie mergulharam numa estética nova, inspirada pelas bandas alemãs que vinham fazendo barulho na cena experimental desde o fim dos anos 60. Kraftwerk já havia lançado Radio-Activity e Autobahn, com suas texturas mínimas e sintetizadores repetitivos. Neu! e Can exploravam estruturas circulares e longas improvisações. O termo krautrock, cunhado pela imprensa britânica, tentava dar conta daquela mistura de rock psicodélico, música eletrônica e ambientações quase científicas. Bowie já estava absorvendo essas influências no que viria a ser sua trilogia berlinense. E Iggy foi junto.

Iggy Pop em West Berlin’s Kleistpark U-Bahn station, 1977.

O resultado é The Idiot, lançado em março de 1977, com produção de Bowie. O disco soa como um ensaio para Low, que sairia meses depois. Mas em vez da melancolia contida de Bowie, o que ouvimos é a entrega crua de Iggy, com vocais baixos e letras carregadas de tédio e alienação. Em Nightclubbing, ele canta sobre vagar pelas ruas como quem já desistiu de entender o mundo. A batida foi criada com uma bateria eletrônica Roland CR-78, usada no modo manual. Bowie, ao piano, insere acordes secos, e o arranjo se mantém estático, hipnótico. Em Dum Dum Boys, Iggy revisita os Stooges com uma nostalgia distante, quase zombeteira. A música dura sete minutos e soa como um lamento entorpecido. Já Funtime, mais dançante, tem ecos de glam e do cabaré berlinense. Mas a sensação geral do disco é de deslocamento — nada parece encaixar de forma confortável.

Essa desconexão virou estética. E não por acaso. Quando Ian Curtis, vocalista do Joy Division, tirou a própria vida em 1980, The Idiot tocava na vitrola. A história é conhecida, mas ainda arrepia. Curtis havia sido profundamente influenciado pelo disco, tanto em termos líricos quanto sonoros. A secura dos arranjos, a forma como Iggy canta com distanciamento emocional, tudo isso moldou a maneira como o Joy Division criaria seus próprios mundos sombrios em Unknown Pleasures e Closer. E não foram os únicos. Bauhaus, The Cure, Siouxsie and the Banshees e até Nine Inch Nails, anos depois, beberiam desse mesmo poço.

The Idiot não foi pensado para inaugurar um gênero. Iggy queria apenas escapar de si mesmo. Mas, ao abandonar as guitarras distorcidas e se aproximar do minimalismo eletrônico europeu, ele acabou antecipando o que viria a ser chamado de pós-punk. Criou, com ajuda de Bowie, um disco estranho, frio e fascinante. E ao fazer isso, apontou uma nova direção para o rock: menos sobre energia, mais sobre atmosfera; menos catarse, mais ruído interior.

Hoje, quando volto a esse disco, não o ouço como uma ruptura, mas como uma transição. É um trabalho que habita um espaço entre épocas, entre gêneros, entre vidas. E talvez por isso ele ainda incomode — e também permaneça. Não é exagero dizer que, naquele estúdio junto ao Muro de Berlim, Iggy Pop ajudou a desenhar a música que viria depois. Sem slogans, sem autoproclamações. Só com ruídos, ecos e silêncios.

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