A alquimia espiritual de Jorge Ben em “A Tábua de Esmeralda”

Luis Fernando Brod
7 minutos de leitura
Jorge Ben. Foto: Reprodução.

Em 1974, Jorge Ben lançou um disco que desafiava qualquer expectativa. “A Tábua de Esmeralda” combinava samba, ocultismo e espiritualidade afro-brasileira em um mesmo universo sonoro. O álbum se distanciava dos temas urbanos e românticos comuns em sua obra anterior. Era como se ele traduzisse um manuscrito ancestral em acordes e palavras.

Naquele momento, o Brasil vivia os anos duros da ditadura militar. Muitos artistas optavam por críticas sociais veladas em suas canções. Jorge foi por outro caminho: mergulhou em símbolos esotéricos e saberes antigos. Falava de Hermes Trismegisto, alquimia e forças invisíveis com naturalidade quase cotidiana.

O título do disco remete à Tabula Smaragdina, um texto enigmático atribuído a Hermes Trismegisto. Essa figura mítica une Hermes (da mitologia grega), Thoth (do Egito antigo) e um sábio alquimista. Na tradição hermética, ele é o elo entre ciência e espiritualidade. E é justamente esse Hermes que aparece na música “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda”.

A canção não tem refrão nem estrutura convencional. Jorge declama os versos como se participasse de um ritual. A melodia é conduzida por um violão ritmado e hipnótico. Cada palavra parece cuidadosamente escolhida para evocar mais do que explicar.

Versos como “O sol é seu pai / A lua é sua mãe / O vento o trouxe em seu ventre” abrem a canção. A letra revela uma cosmovisão em que os elementos naturais ganham funções criadoras. Sol, lua, vento e terra formam uma rede de forças que sustentam a vida. É uma concepção antiga, presente em diversas tradições esotéricas e filosóficas.

Um dos trechos mais citados da canção vem diretamente da Tábua de Esmeralda: “Tu separarás a terra do fogo e o sutil do espesso”. Na linguagem da alquimia, essa separação simboliza o processo de refinamento interior. Trata-se de distinguir essência e aparência, espírito e matéria.

O texto também orienta: “Docemente, com grande desvelo”. A transformação deve ser cuidadosa, feita com paciência e atenção. Na prática espiritual, é um chamado à observação e à disciplina pessoal. É um trabalho de depuração que envolve mente, corpo e espírito.

Outros trechos seguem o mesmo caminho simbólico: “Pois Ele ascende da terra e descende do céu / E recebe a força das coisas superiores e das coisas inferiores.” Esse “Ele”, escrito com inicial maiúscula nas transcrições disponíveis, pode ser o espírito ou um princípio divino. Representa a união entre o plano material e o espiritual — tema central no hermetismo.

No fim da letra, Jorge canta sobre transmutação, ciclos e integração de opostos. São ideias que atravessam não só a alquimia, mas também filosofias orientais e religiões afro-brasileiras. E é aí que “A Tábua de Esmeralda” se distancia da tradição europeia. Jorge incorpora camadas de brasilidade que tornam o disco único.

A presença de símbolos afrodescendentes é notável, ainda que nem sempre explícita. A religiosidade de rua, o sincretismo popular e a ancestralidade permeiam as faixas. Não se trata de uma leitura ortodoxa do hermetismo, mas de uma apropriação criativa. Jorge mistura referências e cria algo novo, com raízes profundas no Brasil.

O momento do lançamento também reforça o caráter ousado do disco. Enquanto parte da MPB tensionava metáforas políticas, Jorge buscava outras camadas de sentido. “A Tábua de Esmeralda” pode ser vista como um manifesto espiritual em tempos de repressão. Ao valorizar saberes ocultos e periféricos, o álbum desafia a lógica dominante.

Outro aspecto importante é o modo como Jorge apresenta esses temas. Não há didatismo nem explicações lineares nas letras. Ele confia na escuta ativa do público, sem abrir mão da complexidade. Quem quiser entender, precisa buscar, ler, estudar — como quem lê um livro antigo.

Essa postura desafia o consumo imediato da música e valoriza a pesquisa. O disco estimula conexões entre culturas e saberes aparentemente distantes. Do hermetismo europeu ao candomblé, passando pela poesia e pelo samba. É uma obra que sugere mais do que entrega respostas.

Com o passar do tempo, “A Tábua de Esmeralda” ganhou outras camadas de leitura. Hoje, 51 anos depois, segue sendo estudada, discutida e reeditada em vinil. É considerada por muitos o disco mais enigmático da carreira de Jorge Ben Jor. E “Hermes Trismegisto…” talvez seja sua faixa mais simbólica.

Ela resume o espírito do álbum: a fusão entre o esotérico e o terreno. Entre a palavra cantada e o ensinamento cifrado. Um exercício de escuta que exige atenção, mas que continua despertando curiosidade.

É música como caminho — e também como alquimia.

Curiosidades sobre “A Tábua de Esmeralda”

A capa do disco traz uma ilustração retirada do livro Musaeum Hermeticum, publicado em 1625 na Alemanha.

O encarte original apresenta trechos da Tábua de Esmeralda, traduzidos por Jorge, sem fontes indicadas.

“Menina mulher da pele preta”, uma das faixas do álbum, já havia sido lançada em 1971, no disco “Negro é lindo”.

A música “Zumbi” tornou-se um dos temas mais lembrados da resistência negra na cultura brasileira.

Ficha técnica do álbum (1974)

Gravadora: Philips
Produção: Paulinho Tapajós
Arranjos: José Briamonte e Osmar Milito
Participações: músicos de estúdio como Dadi (baixo) e Pedrinho Batera (bateria)

Faixas de destaque:

“Os alquimistas estão chegando”
“Errare humanum est”
“O homem da gravata florida”
“Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda”

Sugestões para aprofundamento

Livro O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas – explora a religiosidade popular e a cultura afro-brasileira.

Episódio “A Tábua de Esmeralda”, do podcast Discoteca Básica, com Ricardo Alexandre – análise completa do disco.

Documentário Samba de raiz e alquimia (ainda sem versão oficial), disponível em canais alternativos no YouTube.

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