“Crocodiles”, do Echo & The Bunnymen: estreia sombria entre a tensão da era Thatcher

Luis Fernando Brod
8 minutos de leitura
Echo and the Bunnymen. Foto: David Hogan/Rex Features.

Quando o Echo & The Bunnymen lançou seu primeiro álbum, “Crocodiles”, em 18 de julho de 1980, o Reino Unido atravessava um momento turbulento. Sob o governo de Margaret Thatcher, recém-eleita no ano anterior, o país enfrentava altos índices de desemprego, cortes severos em políticas públicas e uma tensão social crescente. Em meio à frustração da juventude britânica e à desilusão com as promessas do punk, emergia uma nova geração de bandas. O Echo & The Bunnymen foi uma das que melhor captaram o espírito daquela transição.

Com raízes na cena pós-punk de Liverpool, a banda formada por Ian McCulloch (voz), Will Sergeant (guitarra), Les Pattinson (baixo) e Pete de Freitas (bateria, que entraria após as gravações do disco) criou em “Crocodiles” um universo sonoro carregado de atmosfera, com arranjos melancólicos e letras que alternam entre introspecção, angústia e alienação.

Gravado em março de 1980 nos Rockfield Studios, no País de Gales, com produção de Bill Drummond e David Balfe — ambos ligados à cena independente escocesa e à gravadora Zoo Records — “Crocodiles” foi concebido em clima de urgência. O álbum teve uma produção econômica, com orçamentos limitados, mas não carece de personalidade.

A sonoridade crua e envolta em reverberação é uma característica marcante do disco. As guitarras de Will Sergeant não seguem o caminho do virtuosismo, mas desenham paisagens obscuras, com uso intensivo de delay, criando um ambiente quase espectral. A voz de Ian McCulloch, ora insolente, ora vulnerável, carrega um certo niilismo juvenil que dialogava com o desalento daquela virada de década.

O título do disco não faz referência direta a crocodilos, mas remete à figura primitiva, ameaçadora e silenciosa — uma metáfora para a ansiedade e os instintos incontroláveis que percorrem as letras. “Crocodiles” é sobre sentir-se preso, observado, deslocado.

O disco se alimenta da estética do pós-punk, mas vai além do molde estilístico. Há ecos do Velvet Underground na estrutura minimalista de faixas como “Villiers Terrace” e na densidade de “Pictures on My Wall”, esta última lançada originalmente como single em 1979 em versão diferente. A influência de bandas como Television, The Doors e até mesmo do David Bowie da fase berlinense é perceptível, especialmente nas texturas mais experimentais.

Também é possível notar certa afinidade com contemporâneos como Joy Division e The Teardrop Explodes (com quem dividiam o selo Zoo e parte da cena de Liverpool), ainda que o Echo & The Bunnymen soasse menos opressivo e mais psicodélico.

Há algo de retrô no disco, sem ser nostálgico. Ele resgata o espírito do rock dos anos 1960, mas recodificado sob o filtro da alienação pós-industrial.

Echo and the Bunnymen – Crocodiles. Foto: Acervo Pessoal

“Going Up” abre o disco com andamento lento e crescente tensão. É uma introdução atmosférica, construída sobre guitarras vibrantes e um baixo hipnótico.

“Stars Are Stars” traz um vocal mais emocional e quase resignado, enquanto “Pride” flerta com estruturas mais convencionais do rock britânico, mas sem perder o tom nebuloso.

“Monkeys” marca uma virada mais agressiva, com linhas de baixo marcadas e um McCulloch mais enérgico. Já “Crocodiles”, a faixa-título, é urgente e dançante, com influência evidente do punk.

“Rescue”, lançada como single em maio de 1980, se destaca como um dos momentos mais acessíveis do álbum. Com riffs marcantes e refrão memorável, foi o primeiro sucesso moderado da banda, chegando ao 62º lugar nas paradas britânicas.

“Villiers Terrace” é talvez a canção mais sinistra do disco, com versos que citam “pessoas rolando no chão e comendo tapetes”, uma imagem surrealista que virou marca do vocalista. Fechando o álbum, “Happy Death Men” entrega um clima fúnebre, quase teatral, com estruturas mais abertas e improvisadas.

A recepção inicial a “Crocodiles” foi positiva, embora modesta. A crítica britânica elogiou o frescor da banda e sua recusa em seguir modismos sonoros, enquanto a audiência indie começava a formar uma base fiel. A revista NME, em 1980, descreveu o disco como “uma estreia forte de uma banda promissora que parece determinada a seguir seu próprio caminho”.

Além de “Rescue”, o álbum teve como single “Pictures on My Wall”, relançado em versão remixada. Embora não tenham sido hits de massa, ajudaram a criar a reputação cult da banda.

A turnê de divulgação foi intensa e percorreu clubes, universidades e pequenas casas pelo Reino Unido. Ainda sem o baterista definitivo — Pete de Freitas se juntaria ao grupo após as sessões — a banda contava com um baterista de apoio nas apresentações.

Com a entrada de De Freitas, a química do grupo se fortaleceu e o Echo & The Bunnymen consolidou sua formação clássica. A nova configuração permitiria, nos discos seguintes, um avanço estético mais ambicioso.

Durante as gravações de “Crocodiles”, a banda era cercada por inseguranças típicas de estreantes, mas também por disputas internas de ego, especialmente entre McCulloch e o produtor David Balfe. O vocalista relutava em aceitar sugestões e insistia em manter controle criativo sobre as letras.

Outro ponto de tensão envolvia a ausência de um baterista fixo. O uso de bateria eletrônica nas primeiras demos do grupo foi uma escolha pragmática, mas também moldou a estética mais mecânica de parte do repertório.

Mais tarde, em entrevistas, McCulloch afirmaria que o disco era um “retrato de juventude sob cerco”. Ele se referia não apenas ao clima social da Inglaterra, mas também a conflitos internos — depressão, alienação, paranoia — que permeavam sua escrita.

“Crocodiles” é mais do que o início de uma discografia influente. É um documento de época, uma resposta íntima a uma conjuntura hostil. Lançado no mesmo ano que “Closer” do Joy Division e “Seventeen Seconds” do The Cure, o disco ajudou a definir uma vertente mais lírica e emocional do pós-punk.

A despeito da modéstia de sua estreia comercial, o álbum permanece como um dos mais consistentes registros da virada de década de 1980. E marca o nascimento de uma banda que, ao longo dos anos seguintes, expandiria seus horizontes sem abandonar o impulso sombrio que nasce aqui.

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