Uma das qualidades mais apreciadas em discos considerados clássicos é a sua coesão, a capacidade de criar uma conexão entre suas músicas de forma a contar uma história, ou somente fazer com que sua audição flua naturalmente.
Em alguns casos, uma maior diversidade de estilos dentro de um mesmo trabalho pode ser, analisando-se em retrospecto, o que se costuma chamar de “disco de transição”, onde o artista testa várias possibilidades, antes de consolidar um novo tipo de sonoridade.
Desde seu lançamento anterior, o hoje considerado clássico “Angel Dust” (1992), o Faith No More (FNM) não parecia querer se encaixar em rótulos ou situações pré-estabelecidas. O álbum em questão, considerando precursor do que viria a se tornar o popular Nu-Metal poucos anos adiante, vinha após o sucesso de “Epic”, porém se afastava daquele tipo de som, popular no final dos anos 80 à partir do sucesso de bandas como o Living Colour e o Red Hot Chili Peppers.
“Angel Dust” não obteve grandes vendagens e, para piorar, a banda atravessava problemas internos. O tecladista Roddy Bottum enfrentava problemas com drogas e a perda do pai. Além disso, o guitarrista Jim Martin, muito apegado a um estilo de heavy metal mais tradicional, havia sido demitido em 1993, por conta das famosas “diferenças musicais”. Sua saída chegou a levar, na época, ao cancelamento de uma turnê sul-americana do grupo.
Resumindo: o hype havia acabado, e não existiam grandes expectativas do mercado fonográfico e do público em geral, num novo lançamento do FNM.
A gravação de “King For a Day, Fool for a Lifetime”, 5º lançamento de estúdio dos americanos, e que acaba de completar 30 anos do seu lançamento, foi realizada no Bearsville Studios, em Woodstock, Nova York. Para a vaga de Jim Martin, foi recrutado o guitarrista Trey Spruance (também do Mr. Bungle, banda de Mike Patton, anterior a sua entrada no FNM), que acaba não permanecendo no grupo para as turnês, sendo substituído nos shows por Dean Menta. Futuramente, Spruance viria a tocar ao vivo com o grupo em um festival no Chile, em 2011, única ocasião em que “King for a Day…” foi executado na íntegra.
O primeiro single lançado foi o de “Evidence”, uma balada soft, de refrão funkeado, com diálogos entre o teclado e uma guitarra ‘jazzy’, diferentes de tudo que Patton e sua trupe haviam apresentado até ali. É dos poucos momentos de destaque de Bottum, dados seus problemas já citados.
A produção ficou a cargo de Andy Wallace, engenheiro de som em vários álbuns do período, e que também produziu nada menos que “Chaos A.D.” (1993) do patrimônio nacional Sepultura. Falando em Brasil, consta na tracklist uma singela bossa-nova, de letra nonsense, intitulada “Caralho Voador”, que tem sua história mais bem explicada aqui: https://popfantasma.com.br/o-caralho-voador-de-jeff-bezos-e-o-do-faith-no-more/. Além desta, o grupo chegou a gravar uma versão em português de “Evidence”, ressaltando a sua proximididade com o público brasileiro, que vinha desde à época da turnê de “The Real Thing” (1989).
Mas de estranheza, não é só bossa nova que temos aqui: tem gospel (Just a Man), tem big band (Star A.D.), tem hardcore (Digging the Grave), grindcore (The Gentle Art of Making Enemies), country (Take this Bottle), sem que o FNM perca seu toque particular de absurdo ao brincar com cada um desses estilos. O vocal de Patton, que já havia mudado consideravelmente após sua entrada no grupo, mostra aqui toda sua versatilidade, seja no momento de sussurrar, seja no de se esgoelar.
Em comum com “Angel Dust”, houve o lançamento, como single, de outra cover gravada “meio que de brincadeira”. Se lá foi “Easy”, dos Commodores, em 1995 foi a vez de “I Started a Joke”, dos Bee Gees. Como a essa altura, ninguém mais entendia a ironia de Patton e banda, acabavam levando essas versões a sério demais, levando-as até a execuções em rádio e inclusão em trilhas de novela em nosso país. Tanto “Easy” como “I Started a Joke” são citadas na impressão das respectivas capas das versões brasileiras em CD, ao invés de apenas incluírem um adesivo no plástico com a informação. A bela arte de “King for a Day…” originada da Graphic Novel “Flood”, do cartunista Eric Drooker, não merecia isso.

Quanto ao disco, pode ser que, no meio dessa mistura, nem todas as experimentações funcionem (Star A.D. soa especialmente frustrante), e definitivamente os longos 56 minutos não contribuem para sua melhor fruição. Porém, além de contribuir com várias músicas para setlists futuros, o álbum atesta toda a capacidade dos músicos e, quando acerta, traz muitos dos melhores momentos da carreira da banda, provando que nem sempre é preciso coesão para ser relevante.
Naturalmente que, na época, ninguém entendeu nada, conforme o baixista Billy Gould relata em entrevista recente para o site Rock on Board: https://www.rockonboard.com.br/2025/03/faith-no-more-e-os-30-anos-de-king-for.html. Porém, aos poucos, “King For a Day, Fool for a Lifetime” vem sendo mais bem valorizado entre os velhos e novos fãs.
O trabalho seguinte, bem mais coeso, chega em clima de fim de festa, sendo ironicamente chamado de “Album of the Year” (1997). Assunto para 2027.
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