Aquele que deu à luz ao século 20 – Do Inferno, de Alan Moore.

Maurício Silva
17 minutos de leitura
From Hell, Editora: Top Shelf Productions

A Era Vitoriana na Inglaterra do século 19 foi uma área de diversos avanços no pensamento crítico e em diversos avanços científicos, que permitiu a ascensão da industrialização, assim também como o surgimento de outros serviços, comuns em nosso dia-a-dia, como o turismo. Entretanto, foi uma era que, em contraponto, também deu luz ao que chamamos hoje de pseudociência, desde péssimas escolhas de químicos tóxicos que compunham os produtos do dia-a-dia, desde vestimentas até alimentos, que acabavam por aumentar a taxa de mortalidade em uma época de incertezas e pura morbidez, mas principalmente pelo surgimento do que hoje é conhecida como imprensa marrom. E dessa mesma área, um dos maiores folclores policiais já existentes abriu as portas do século 20: 5 miseráveis mulheres tinham suas vidas ceifadas pelas mãos de Jack, O Estripador.

William Gull, pelas mãos de Alan Moore e Eddie Campbel.

Reza a lenda que o assassino nunca tenha sido capturado, o pai dos seriais killers criou uma lenda em torno de sua figura, que entretanto, gera controvérsia entre as mentes mais sábias e céticas. Como pode cinco homicídios e nenhum suspeito? Como um simples homem pôde enganar a polícia de Londres inteira e simplesmente deixar não apenas as autoridades, mas também a mídia um quebra-cabeça indecifrável até os dias de hoje para se resolver? É isso que Alan Moore propõe em sua versão fictícia sobre a ocorrência desses “fatos”, por assim dizer, com sua obra Do Inferno, escrita entre os anos de 1989 até 1996, com ilustrações de Eddie Campbell. O escritor de quadrinhos, já “aposentado” desse ramo desde o ano de 2019, foi um dos emblemáticos criadores de histórias que surgiram da Invasão Britânica na década de 80 que visava mudar a cara das publicações da área, possuindo um teor fortemente adulto e questionador diante à censura imposta pelo Comics Code Authority na década de 50 nos Estados Unidos, que seguiu com uma queda de qualidade em histórias autênticas daquela indústria.

Moore, que aproveitava os louros, assim como também intrigas que suas publicações à editora DC Comics, V de Vingança, Watchmen, Monstro do Pântano e A Piada Mortal lhes causaram em ambiente editorial, teve a inspiração para Do Inferno no ano de 1988 a partir de um documentário especial sobre o centenário dos assassinatos em Whitechapel que estava assistindo pela TV, tendo um bom tempo em mãos ocupado para realizar uma pesquisa extensa nunca antes vista na história da roteirização nesse meio, pedindo até a ajuda de Neil Gaiman para encontrar biografias raras e esquecidas sobre possíveis suspeitos da polícia e demais relatórios no Museu Britânico. Temos então como a inspiração principal do escritor o controverso livro de Stephen Knight, Jack, O Estripador: A Solução Final, cujas teorias foram desmentidas por historiadores, tendo a coroa britânica da época e a maçonaria como pivô de uma conspiração ainda maior, além do professor William Whitey Gull (1816-1890) como a figura emblemática por trás do capuz de assassino. Tal era considerado um defensor ferrenho dos direitos das mulheres no ingresso às universidades para estudos de avanços científicos em uma época em que o feminismo começou a mostrar as suas caras diante da misoginia e o patriarcado contemporâneo. Se tais informações através dessa mesma inspiração eram puro charlatanismo, o por quê da escolha de Moore?

Alan Moore e Eddie Campbell, as mentes por trás de Do Inferno – Créditos: Imprensa.

A resposta para essa pergunta se dá através da estrutura de roteiro e metáforas diante a simbolismos que possuímos em nossa sociedade, na qual somos cercados no dia-a-dia e que moldam as nossas bases sociais e hierarquias que todos nós prostramos diante de cultos de personalidade e do alto escalão de autoridade que mantém a nossa forma de pensamento e rotinas através do senso comum que todos nós partilhamos, mesmo sem aceitarmos a nossa participação nessa mesma realidade. Da mesma forma que um charlatão no ano de 1976 joga um véu de solução em um crime sem solução há quase cem anos, diversas outras figuras em busca de reconhecimento midiático e a própria mídia em si podem se aproveitar de uma situação de injustiça para trazerem a luz com uma falsa teoria científica sobre terem descoberto após anos e anos a identidade do verdadeiro assassino. Até mesmo a Madame Blavatsky não escapou de tais alegações, vindas de um dos ocultistas mais famosos da história moderna, Aleister Crowley, e que também tem sua participação de forma passageira nas páginas do quadrinho. Precisamos entender que a ideia de Moore não é um whodunit, e sim como a magia, através desses símbolos pode moldar a nossa mente a acreditar em tais fatos, sem mesmo considerar embasamentos científicos ou as realidades diversas que nos cercam, mas que todos somos alienados através dos olhos da lei e de outras grandes figuras de autoridade.

Netley e Gull, dando boas vindas a polícia e a imprensa. Editora: Top Shelf Productions.

Para o leitor iniciante no trabalho de Moore, talvez a carga espessa que esse coloca em diálogos longos, junto do trabalho de ilustração cru de Campbell, que usa a combinação de caneta e tinta preta para sua arte densa, não seja a leitura mais fácil de introdução ao legado do escritor. Lembro-me de na década passada, muita gente que se encontrava nos primeiros estágios de vida universitária ou segunda metade da adolescência por si só tentarem embarcar na leitura achando que seria um parque de diversões proporcionado pela propaganda egocêntrica e abstrata que a adaptação de Watchmen (2009) por Zack Snyder criou em torno do currículo do quadrinista britânico. A reação inicial era ora de quase uma força para terminar os primeiros capítulos, ora por abandonar a leitura por si só esperando apenas uma outra tola história de terror, como a própria e famigerada adaptação de 2001 propôs a trazer ao público no início da década de 2000, tendo Johny Depp no elenco interpretando o inspetor Frederick Aberline.

No enredo, somos apresentados a cinco prostitutas, Mary Kelly, Polly Nichols, Annie Chapman, Liz Stride e Kate Eddowes, junto de um dilema: um bebê real bastardo, a relação de Príncipe Edward com uma funcionária de uma doceria Annie Crook, cuja abdução pelas autoridades se deu por meio dessa, e uma chantagem financeira a coroa em troca do silêncio em torno do paradeiro de uma jovem trabalhadora que teve sua vida interrompida graças ao hedonismo de um representante de sua linhagem real. Não gostando nem um pouco da situação apresentada, quando mal pôde esconder os esqueletos no armário, a rainha Vitória decide silenciar de uma vez por todas essas mulheres pelas mãos do renomado e de confiança médico da família e também membro da maçonaria William Gull, que via tal tarefa atribuída pela realeza poderia ser a resposta para um ato grandioso em vida cujo acreditava um dia estar destinado, desde muito pequeno quando seu falecido pai colou essas ideias em sua cabeça.

Junto do cocheiro da realeza Netley que assiste de forma conflitante ao longo da história o próprio doutor em seus atos, Gull promove uma caçada à essas mulheres, com o objetivo de provar suas teorias diante um mundo racional e livre de inspirações dionisíacas, causadas, segundo esse, principalmente pela influência das mulheres em posições de relevância e autoridade na sociedade, corrompendo a significância da razão e do patriarcado que moldavam as estruturas de um sistema de hierarquia, que como citados antes nesse texto, mantinham as bases da sociedade em ordem. Seus assassinatos possuem, então, um propósito muito maior do que o pedido pela rainha, e também, em um ponto de vista anatômico, revolucionário através das lentes do mesmo personagem.

Um jovem Aleister Crowley no meio de uma multidão tão curiosamente mórbida quanto o garoto, e Aberline. Editora Veneta.

O inspetor Frederik Aberline, na qual fez sua primeira aparição no prólogo já mais velho ao lado do ex-vidente real Robert James Lees, é posto a tarefa de comandar a operação policial que visava buscar a solução para os assassinatos que ocorriam na região de Whitechapel. Entretanto, um de seus maiores obstáculos seria a corrupção instaurada dentro do próprio ambiente organizacional da polícia, tendo Gull e a Maçonaria influenciando, junto da coroa, a forma as como pistas e testemunhas seriam silenciadas, além deformas de como abafarem o caso, já corrente e dando muito o que falar nas ruas de Londres. Nós também contemplamos a presença de outras grandes figuras históricas, como curtas aparições de Oscar Wilde, cuja humilde e devassa residência serviria de pano para introdução de um final sacrífico, Joseph Carey Merrick, mais conhecido como O Homem Elefante, teria sua condição como um propósito simbólico num dos infames atos de Gull, além de algumas outras figuras emblemáticas da histórica britânica, assim como uma passagem que previa um certo mal que estaria sendo concebido em algum certo lugar na Europa que iria causar um banho de sangue e tormenta, trazendo trauma ao velho mundo ao longo das décadas que iriam seguir depois disso.

Londres Vitoriana, ilustrada por Eddie Campbell.

Conforme seguimos a leitura, fica evidente o bom senso em torno da situação na qual teria sido a realidade até então presente: quem é Jack, O Estripador, senão apenas um valor simbólico que abrange desde estudos policiais até a cultura pop? A verdade é que em Whitechapel, um dos bairros mais perigosos de Londres do século 19, todos poderiam estar vestindo esse manto do assassino. Na época, o êxodo rural para as cidades grandes foi estapafúrdio: diversos trabalhadores em busca de melhores condições de vida saíram dos campos com a falsa promessa de ascensão financeira e social, além de estabilidade e segurança, apenas para serem enganados por uma indústria que visava horas a fio de trabalho forçado em ocupações perigosas nas quais poderiam lhes custar a vida. E aqueles, principalmente aquelas que não se adequassem à essa linha de montagem de moer gente, tinham de procurar ganhar a vida e contar com a sorte em trabalhos vistos como repulsa pela sociedade, no caso, a prostituição, que gera comentários por parte de alas conservadoras e religiosas até nos dias de hoje.

A pergunta que fica ao leitor é: se a lei tem como propósito manter a ordem e a segurança, a quais interesses essa protege? Quem molda essas leis e calam vozes emergentes diante terríveis absurdos, nas quais nos passam despercebidos, mesmo sendo expostos à nós em um minuto, para serem logo esquecidos em meia hora? As distrações e as iscas utilizadas para a criação dessas, formas de colocarem uma coleirinha na população e deixa-la em seu devido lugar em um jogo de gato e rato, nós e eles, afinal de contas, Deus sabe que não queria isso de nós. Em paralelo à essa obra, uma outra colaboração de Moore e Campbell se mostra aqui à menção: Em A Membrana Fetal, do compilado que divide espaço com Serpentes e Escadas no livro Palavras, Magias e Serpentes, lançada no Brasil pela Editora Darkside Books, somos apresentados a uma visão autobiográfica do escritor inglês, que visa ao leitor interpretar como nossas vidas, nossos destinos estão moldados através de uma membrana fetal, ou na simbologia dessa, uma espiral que já premedita toda a nossa trajetória. Quando menos percebemos, a vida passou diante tantas máscaras sociais que botamos, o véu da morte mostra a dura realidade e como a inocência da infância se rompe uma vez em contato com uma realidade que menos nos permite deixar ser quem somos, e sim, mais performar a propósito de grandes engravatados ou através da violência que esses mesmos instauram na sociedade, para que ela se mantenha presa e comportada numa linha de produção infinita e auto destrutiva, coisa que na correria do dia-a-dia, sequer questionamos a respeito.

O serial killer mais famoso do mundo é apenas um pano que cobre um sistema complexo, que ao leitor retirar, lhe mostra a visão das mentiras através das impressões que nos são criadas pela mídia sensacionalista, por grandes políticos, magistrados e demais figuras olimpianas, hoje em dia, que se encontram em qualquer lugar na internet, desde influencers até mesmo subcelebridades que ganham espaço pela subversividade de atos muitas vezes monstruosos e desumanos. Quem molda nossas opiniões? Pergunte a si mesmo, você que chegou até aqui. Uma matéria dessas com o título que tem não lhe atraiu a toa, e muito provavelmente, algo nela chamou sua atenção e influência até aqui.

Do Inferno pode ser adquirido pela Editora Veneta, tendo seu ano original de relançamento em 2014 pela própria, anteriormente pela Editora Via Lettera na década de 2000, tendo exemplares separados e hoje em dia fora circulação no mercado editorial. É traduzido por Jotapê Martins, com a arte da capa para edição nacional feita pelas mãos de Gustavo Piqueira, ilustrador de design gráfico da multipremiado estúdio de design gráfico, Casa Rex.

Do Inferno, Editora Veneta.

“Um dia, a humanidade olhará para trás e irá dizer que eu dei a luz ao século 20” – Jack, O Estripador; via imprensa da época.

“Esse livro é dedicado a Polly Nichols, Annie Chapman, Liz Stride, Kate Eddowes e Marie Jannette Kelly. Vocês e suas mortes: apenas dessas coisas temos certeza. Boa noite. Boa noite, senhoras.” – Alan Moore, dedicatória como prefácio na obra Do Inferno.

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